sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

ELOGIO AO AMOR

"Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
(...) Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.
Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".
Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Elogio ao amor (Miguel Esteves Cardoso - Expresso )
Do blog http://microcosmos.weblog.com.pt/arquivo/198798.html

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Palavras

Sinto os dias passarem ao meu lado. Sinto que lhes sou estranho; um corpo que se mexe mas não se encontra. Não sou nada senão fantasia. Estou vivo porque tenho palavras. Com elas, formo frases, pensamentos, mentiras; com elas, eu grito, eu me escondo, eu me atolo, eu me escorro; com elas, posso ser vão, posso excluir-me de toda essa porcaria de felicidade forjada. O corpo que tenho é feito de palavras. Possuo-lhe com palavras. Não sou nada senão palavras. Ao mesmo tempo sou meu infinito e meu fim. Porque nasço e morro palavras.

O gaudério

Sentado à beira do fogo de chão, ele fita em volta, à meia luz do entardecer, os apetrechos que o circundam e tornam rústico o ambiente.
A lata quase em brasa faz as vezes de chaleira. A água fervilha a espera do mate verde e fundo que irá absorvê-la em poucos goles. O gaudério, de mirada profunda e plana, segue a olhar ao redor, num misto de saudade e felicidade, os adornos que lhe dão ares de serenidade.
A vida no campo tem dessas coisas: cheiro do mato, pássaros cantando, cuscos correndo atrás dos patos, galos amanhecendo os peões.
A rotina aparente é esquecida para quem, na lide campeira, tem de tirar seu sustento ou mesmo está a aproveitar o tempo que ainda lhe resta. Para muitos, é um hábito, simplesmente. Para o gaudério, é a sua vida.
Embora vivente da cidade há muitos anos, seu sonho sempre foi, desde os tempos de guri em Bagé, no extremo Sul do Rio Grande do Sul, estar ao lado da família, dos bichos, dos cheiros do mato, das coisas do seu povo, da sua terra.
Para ele, que por circunstâncias e necessidade teve de virar “doutor”, como diziam os mais velhos, a imaginação e a recordação nunca lhe deixaram fugir da cabeça as imagens do pago: chapéu tapeado na testa, pilcha na estica com cheiro de terra e pasto, bota ou alpargata nos pés pra segurar-se nos estribos e o bom e velho companheiro, que, de tão xucro, nem precisava dar sinal pra que se iniciasse no galope campo a fora.
Agora essas imagens não mais povoam sua mente; voltou a vivê-las de perto. Enfim, depois de anos de espera, o gaudério pode realizar seu sonho de outrora e aventurar-se novamente por campos mais altivos e segredosos que os do seu velho Pampa.
A essa hora, juntos num pago sem dúvida melhor do que este, dona Carmen, seu Cossio e o gaudério, que também herdou do pai não só o semblante mas também o nome, Jacinto, tiram a lata do fogo, enchem de água fervente a cuia funda de seu Cossio e sorvem o mate de erva grossa e amarga. No mesmo instante, um ar plácido toma conta do galpão.
Dona Carmen, entre um e outro toque no cabelo, termina de ler, pela milésima vez, O Assassinato de Roger Ackroyd, da Agahta Christie; seu Cossio acalma o rosilho e o zaino que acabaram de chegar do campo; e o Dego, o gaudério, segue a fitar, fixo, aquilo tudo no entorno, lembrando, com nostalgia e um sorriso largo na estampa, da família que andava a vontade pelas bandas do Sul.
Com o braço em riste, como se os cumprimentasse de longe, tem a certeza de que, mesmo sabendo que está no coração de cada um deles, um dia ainda os encontrará. Nem que seja para dar-lhes um abraço apertado e dizer-lhes o quanto os ama.

(Homenagem ao tio Dego, meu querido amigo e padrinho)

Último pingo

O último pingo escorre pelo rosto cansado. Desce lento, contornando os olhos fundos e tristes. Cruza o canto esquerdo da bochecha áspera de menina envelhecida. Tudo em volta está seco. Só o último pingo se encarrega de dar vida àquela face jovem e transtornada. A pele tenta sugar, com todas suas forças, aquele suspiro sem ar. Em vão. O pingo segue a escorregar por entre as rasuras da tez sofrida. Aproxima-se da boca desidratada. Contorna o que um dia teve formato de coração vermelho. Passa pelo queixo marcado como a ferro de marcar boi. Pendura-se na extremidade baixa do rosto. Cai sobre o colo magro e de roupas esfarrapadas pelo tempo que não o dela. A menina ofega uma respiração temerosa, pressente que algo se encerra. A lágrima para. Fita-a, a menina. Não existe outra. Começa a evaporar. Olhos entreabertos. A lágrima se esvai, apaga-se devagar como o fim da fogueirinha de criança. Pálpebras pesam moribundas. O pingo seca. O corpo também.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Por aí

Não quero nada de volta. As pessoas que deixei, as que me deixaram, as que deixamos e conquistamos a cada instante maluco. Tenho um pouco de mim em tanta gente que anda por aí. Como tatuagens internas, que só as pessoas com quem se convive sabem. Velhos amores, alguns dissabores, doces lembranças, dores diversas. Os amores se vão. Tudo se vai. O fim é o sempre. Absoluto como rei das coisas. Eu só acredito no fim. Com o resto, eu me viro, e vivo intensamente até chegar de novo ao novo fim. Mas eu me desenho eternamente dentro de você e você em mim. Mesmo que a gente saiba sobre o fim de tudo que há na vida. O fim e o ponto. E assim eu vivo: consumindo e sendo consumido. Até encontrar um fim que me baste.

Um nada

E quando, de um lado, a pele bate: corpo com corpo, rosto com rosto, boca com boca, sexo com sexo. E quando, de outro, a face se mostra: careta, estampada, desmarcada, despida de si, violável. O caminhar nem sempre é pra frente. A pele pode esconder o que está lá dentro. Há algo mais forte do que a extremidade. Um calabouço de sensações que se junta e faz o sangue fervilhar. Momentaneamente. É quando os olhos não enxergam mais. A cegueira vem confusa e atrapalha todo o resto. Engana quem quer ser enganado, deturpa o que mentia ter algum sentido. E quando meu jeito lhe foge. Eu sumo e deixo vagos vestígios. Não quero ser encontrado. Desisti de viver à deriva. Afundei em meu mar de pensamentos idílicos. Estou lá no fundo: escuro, breu, rasteiro, sorrateiro. A claridade me dói. O cheiro das rosas, aquele do campo onde andávamos, usurpou-nos. A paixão suave virou número fácil, recordação terna. O passado acumulou-se, lá no fundo; tornou-se escasso; presente guardado, novo e empoeirado. Nada ainda é demais. Aquele nada iludido. Realidade construída, moderna em excesso. Estou velho há mais tempo; tornei-me. Estou cheio de nada, de um nada cheio. Um nada meu, só meu. Nem tão simplesmente, talvez de repente. Mas um todo nada. Tão e somente.

Exteriorizar-se

Eu não me vejo pelos meus olhos. Não consigo mais me enxergar. Perdi meu reflexo. Agora sou caricatura de rua. Um desenho de mim mesmo. Agora estou cansado. Estou muito cansado. Sinto que estou engasgando. As palavras que não digo arranham minha garganta. As que digo, não fazem sentido. Estou perdendo os sentidos. Estou desorganizado por dentro. Parei de sentir. Parei de chorar. Parei de respirar. Parei de rir. Parei...parei...Estou me deixando. Tenho de me ver de fora. Tenho de ver o que não tem sentido em mim. E o que faz muito sentido. Quero um caos menos conturbado. Quero me poluir e depois me expelir pelos poros.