sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O gaudério

Sentado à beira do fogo de chão, ele fita em volta, à meia luz do entardecer, os apetrechos que o circundam e tornam rústico o ambiente.
A lata quase em brasa faz as vezes de chaleira. A água fervilha a espera do mate verde e fundo que irá absorvê-la em poucos goles. O gaudério, de mirada profunda e plana, segue a olhar ao redor, num misto de saudade e felicidade, os adornos que lhe dão ares de serenidade.
A vida no campo tem dessas coisas: cheiro do mato, pássaros cantando, cuscos correndo atrás dos patos, galos amanhecendo os peões.
A rotina aparente é esquecida para quem, na lide campeira, tem de tirar seu sustento ou mesmo está a aproveitar o tempo que ainda lhe resta. Para muitos, é um hábito, simplesmente. Para o gaudério, é a sua vida.
Embora vivente da cidade há muitos anos, seu sonho sempre foi, desde os tempos de guri em Bagé, no extremo Sul do Rio Grande do Sul, estar ao lado da família, dos bichos, dos cheiros do mato, das coisas do seu povo, da sua terra.
Para ele, que por circunstâncias e necessidade teve de virar “doutor”, como diziam os mais velhos, a imaginação e a recordação nunca lhe deixaram fugir da cabeça as imagens do pago: chapéu tapeado na testa, pilcha na estica com cheiro de terra e pasto, bota ou alpargata nos pés pra segurar-se nos estribos e o bom e velho companheiro, que, de tão xucro, nem precisava dar sinal pra que se iniciasse no galope campo a fora.
Agora essas imagens não mais povoam sua mente; voltou a vivê-las de perto. Enfim, depois de anos de espera, o gaudério pode realizar seu sonho de outrora e aventurar-se novamente por campos mais altivos e segredosos que os do seu velho Pampa.
A essa hora, juntos num pago sem dúvida melhor do que este, dona Carmen, seu Cossio e o gaudério, que também herdou do pai não só o semblante mas também o nome, Jacinto, tiram a lata do fogo, enchem de água fervente a cuia funda de seu Cossio e sorvem o mate de erva grossa e amarga. No mesmo instante, um ar plácido toma conta do galpão.
Dona Carmen, entre um e outro toque no cabelo, termina de ler, pela milésima vez, O Assassinato de Roger Ackroyd, da Agahta Christie; seu Cossio acalma o rosilho e o zaino que acabaram de chegar do campo; e o Dego, o gaudério, segue a fitar, fixo, aquilo tudo no entorno, lembrando, com nostalgia e um sorriso largo na estampa, da família que andava a vontade pelas bandas do Sul.
Com o braço em riste, como se os cumprimentasse de longe, tem a certeza de que, mesmo sabendo que está no coração de cada um deles, um dia ainda os encontrará. Nem que seja para dar-lhes um abraço apertado e dizer-lhes o quanto os ama.

(Homenagem ao tio Dego, meu querido amigo e padrinho)

Um comentário:

  1. Parabéns!!! Vi a chamada do texto no Face da sua mãe e fiquei curiosa...Maravilhoso!!!
    Gostaria de pedir sua autorização para utilizar em um Seminário que organizarei em Bagé, claro que devidamente identificado.
    Aguardo seu contato.
    Um abraço!
    Alessandra
    Diretora Pedagógica - EducMais Consultoria

    http://saberativo.blogspot.com
    alecaldeia@hotmail.com

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