terça-feira, 18 de maio de 2010

Inseguro em ti

Estou inseguro. Estou a me procurar todos os dias em frente ao espelho. Meu reflexo já não me satisfaz mais. Tenho uma cara cálida e branca. Uma face antagônica. Estou perdido. Não quero saber onde estou e nem o que sou. Tenho medo de achar alguém que talvez já tenha sido alguma vez. Coisas iguais.


O novo me atrai. Vou me cortar em pedaços. Quem sabe assim faça uma nova identidade. Quem sabe assim minha foto não reflita a mesma imagem do espelho de ontem. Vou comprar um espelho novo; vou pintá-lo de preto.

Preciso de um abajur a meia luz. Uma fotografia com tons felinianos. Meus cabelos castanhos em forma de contorno. Teu corpo reluzente a encontrar minha silhueta forte e rígida. Teu sexo úmido a esfregar-se em minha coxa.

Somos dois humanos do acaso. Momentos sem obrigação de se repetir. Amor em seu menor formato. Como as migalhas espalhadas do meu espelho velho. Pés descalços deixam rastros de sangue. As marcas vermelhas no chão, uma ao lado da outra, são o nosso pacto, nossa impressão digital. A prisão mesmo antes do crime.

Não podemos nos permitir isso. Somos livres, você e eu. Temos de ser iguais àquele passarinho no parapeito da janela a nos encarar. Ele vai e vem e nem nota nada. Não percebe o suor dos meus poros a se misturar com o seu. Ocasionalmente nos tornamos um, sem abrir mão da individualidade.

A dualidade de um lado só. Sem cara e coroa. O clichê biológico da espécie. A necessidade com consentimento. Às vezes, sem. Às vezes, tem. O drama. A cama. Os lençóis sujos com o liquido escuro. Sequer bebemos vinho. Deleitamo-nos até o despertar dos curiosos. A vaidade vista como sinal de arrogância. Os simples fitar da inveja ao lado. Calo-me. Dispo-te. Mais uma vez. As mãos agora percorrem de cima para baixo. Chegam ao teu ventre. Misturam-se ao viscoso liquido que jorra em dois tons. Não há nada alheio. É um jogo cínico. Duas mentes de um ato épico. A última vez que te sinto. A última tela que pinto.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Um pobre homem

Não tenho preferências por cor de pele ou cabelo de mulher. Gosto delas, e ponto. De todas; sem distinção. Mas aquela loirinha arrasou meu coração. Tinha o andar leve; pernas finas, mas lindas; o olhar penetrante; seios avantajados; voz de veludo; corpo escultural. Hipnotizava-me a cada fitada. Caía a seus pés.


A beleza nela era algo singular. Toda vez que a via saltavam-me os olhos; sentia um misto de desejo com ternura; de paixão com devoção (não devoção cristã e nem de subserviência). E ela sabia disso. Aproveitava-se, inclusive. Pedia-me tudo; eu fazia mais um pouco. Sem pestanejar. Pode parecer loucura. Devia ser mesmo. De minha parte não havia razão, só emoção; não havia amor próprio, só amor a ela, e em dobro.

É nestas horas que se vê o poder das mulheres, o fascínio que elas podem causar num pobre homem. Sentia-me um pobre homem, de vez em quando: pobre por amá-la tanto; pobre por achar que não suportaria viver sem ela. E realmente, naquele momento, não conseguia. Havia algo de magnético, de astronômico. Quem sabe ela fosse a lua?

Nunca tendei entender o que se passava. Talvez não quisesse. Bastava-me estar ao seu lado; às vezes acordar ao seu lado; às vezes pensar que em algum momento estaria ao seu lado. Nunca fizemos planos. Apenas vivemos os momentos: bons e ruins, é claro. Mas ela me deixou. Foi embora sem sequer dar adeus. Nenhuma explicação, nenhuma divagação, nenhum “eu te amei, mas tive que ir”.

Aquela loirinha ainda povoa minha mente. Penso o que teria sido de mim se ainda estivesse com ela. Imagino filhos loirinhos correndo num quintal florescido; uma casa grande com vista para o mar e nós dois, apaixonados, banhando-nos num oceano qualquer; vivendo de amor, como em alguma história com final feliz e sem dos desprazeres da vida real.

Pensando bem, agora sem ela, com o passar dos anos me tornaria apenas um pobre homem, e velho, muito velho, porque teria amado mais do que deveria. Seria pior do que o mestre Gabriel García Márquez: ficaria sem as grandes obras para a posteridade e sem as memória das putas que nunca tive, mesmo que elas fossem tristes.

Comida de vermes

O motel velho de beira de estrada dá o aspecto de um lugar onde o desenvolvimento é palavra corrente só em telejornais. Um letreiro informa os valores: R$ 20 o pernoite e R$ 8 por três horas. Final de tarde na cidadezinha de pouco mais de mil habitantes. O quarto de número 12 está fechado. O proprietário – um gordo, de bigode avantajado, calçando botas de cano longo, sem cadarço, e calças velhas - não registrou os últimos hóspedes. Perdeu o livro em que anotava o nome das pessoas.


Dentro do 12 há algo que transpira ares de putrefação. A camareira é mandada para verificar se os hóspedes querem que o quarto seja limpo. Sente o odor apenas ao caminhar pelo corredor. Chega a ficar tonta quando se aproxima da porta. Tenta abri-la com a chave. Não precisa. Está encostada. A luz está queimada. Tem dificuldade de enxergar. Tenta o abajur. Nada. Percebe a sola do sapato grudar-se ao chão a cada passo. Não agüenta ficar mais um segundo. Está com nojo. E medo. Sai para buscar uma lanterna.

A noite chega. Resolve levar o gordo consigo. Ele diz que não pode deixar a recepção. Ela insiste. Ele cede. Leva na boca uma coxa de galinha frita. Os pêlos do bigode brilham de tão engordurados. Devora o pedaço de ave com apenas duas dentadas. Joga o osso fora.

No caminho ela diz ter algo de estranho no 12. Ele afirma realmente não ter visto mais o casal que se hospedara havia horas. Deviam ter saído para visitar as cidades das redondezas e esqueceram de deixar a chave, acredita. Ela acha que não. Continua a suspeitar de que boa coisa não era. Chegam.

O forte cheiro faz embrulhar o estômago do gordo. Ela traz a lanterna em punho. Adentram. Os narizes tapados. Ela ilumina a cama de casal. Vazia. Ilumina o chão. Há vestígios do que parece ser sangue. Ele pega a lanterna. Dirigem-se ao banheiro. Também vazio. Naquele momento, pensa ele, a sensação é pior do que estar num chiqueiro. Algo apodrecera ali. Ele ilumina o criado-mudo. Uma faca com sangue. Pensam em ligar para a polícia. Primeiro preferem vasculhar a pequena cozinha.

Antes, porém, ouvem um barulho. Voltam. Duas pessoas abrem a porta: um homem e uma mulher. Ele coloca luz na cara de ambos. Gritos tomam conta do local. Assustam-se. Parecem ser os hóspedes. Não há certeza. Ele e a camareira estão cara a cara com os “quase” mortos ou “assassinos”. O rapaz e a mulher tentam explicar a situação. Acalmam-se. Ele apenas cortara-se ao tentar desencapar o fio do abajur na tentativa de consertá-lo. Correram para o pronto-socorro, que também é hospital. Tiveram de ficar horas. Mas ainda havia um mistério, pensa o gordo-bigodudo.

Pergunta-lhes sobre o cheiro. O casal também não sabe. Vão à cozinha novamente. É de dali que vem o aroma fétido. Moscas sobrevoam; fazem muito barulho. O gordo está com ânsia; acha que vai vomitar. Prende a respiração. Direciona a luz da lanterna à bancadinha próxima ao fogão de duas bocas. Veem diversos insetos alimentar-se de restos de um frango. Ele vomita. Vai demorar a comer de novo aves e assemelhados.

À frente do motel uma nova placa. Que diz, em letras maiores até que o preço da estadia: - Proibido deixar comida no quarto.

Conto escrito em junho de 2008.

Retrato de um forasteiro

Um forasteiro que visitasse Bagé há dez anos, no ano da graça de 1998, com certeza se faria algumas perguntas sobre a cidade: Onde está a cidadania das pessoas? Como as crianças estudam em escolas tão precárias? Como as pessoas vivem com esgoto a céu aberto e sem iluminação? Por que existe tanta gente passando fome? Por que a cidade está tão suja? Isso sem falar em outras dezenas de questionamentos. Provavelmente, este mesmo forasteiro, se quisesse aprofundar sua visão, procuraria a voz do povo. Indignado com o descaso, ele ouviria que a cidade havia sido esquecida há tempos por seus governantes.

Ele iria embora com a idéia de nunca mais voltar. Mas dez anos depois, no entanto, em 2008, o forasteiro, ainda com aquela imagem povoando sua mente, ao lembrar-se daquela cidade relegada à chaga, resolveria visitá-la novamente para ver se as coisas haviam mudado. Porque a recordação de um povo esquecido, jogado à própria sorte, ainda lhe inquietaria.

Ao chegar de novo ao que havia considerado na época uma pintura de Modigliani sobre o brutal retrato da Primeira Grande Guerra, ele se surpreenderia. Teria, à primeira vista, a impressão de não se tratar do mesmo local onde estivera uma década atrás.

No mesmo trajeto que fizera, ele depararia com outra realidade: a cidade ficara alegre, colorida, iluminada, tinha escolas novas, que davam aos alunos duas refeições por dia, havia postos de saúde novos, prédios históricos reformados, ruas asfaltadas, programas sociais, educacionais, culturais e de saúde. Tudo lhe faria saltar os olhos.

Espantado, não acreditaria: praças novas eram utilizadas por famílias inteiras; programas davam oportunidade a que idosos praticassem esportes; os agricultores do interior não precisavam mais abandonar o campo - eles haviam recebido casas e condições dignas para permanecer trabalhando onde tinham vocação -; milhares de jovens cursavam uma universidade pública e outros se qualificavam em cursos técnicos; mulheres também deixavam de ser apenas “do lar” e passavam a chefiar suas famílias e a obter renda; milhares de pessoas recebiam dignamente e de direito uma renda básica mensal; centenas de famílias conseguiam comprar casa própria; a população ganhava atendimentos de urgência e emergência em suas casas.

Cético sobre o que sua visão lhe proporcionaria, ele procuraria um cidadão qualquer andando pela cidade, a quem perguntaria: O que houve aqui? Quem, por milagre, havia conseguido fazer isso? O cidadão lhe responderia, sem tergiversar: - Foi o PT. E o senhor não viu nada, ainda têm mais - concluiria o cidadão.

Texto escrito e publicado no jornal do Partido dos Trabalhadores em março de 2008.

O cinema, a pirataria e suas nuances

Como sou fã de filmes (de preferência não-hollywoodianos) estava eu a baixar da internet - pirata, é claro – o comentado Meu nome não é Johnny. Esperei a tarde toda na ânsia de ter o que fazer de noite, em Bagé, “num belo dia de janeiro e de calor”.


Umas seis horas depois, qual foi minha surpresa: em vez do filme, um show do Calypso ao vivo, sei lá onde no país. Que m. , disse, em voz alta. Mas aprendi uma coisa com este episódio. Não, não pense que foi que pirataria é crime, isso eu já sabia. Percebi, sim, que devo ver parte do filme antes de baixá-lo todo. Além do que não me considero um pirata. Não vendo os filmes que baixo; no máximo, os empresto aos amigos. Ou seja, não ganho dinheiro com isso. Pratico o amor à sétima arte. Digamos que eu promova a minha boa cultura e de alguns de meus semelhantes.

Tem gente que se diz amante do cinema – ouço isso aos montes – sem nunca ter se deleitado com Bergman, Antonioni, Pasolini, Bertolucci, Godard, Oliver Stone, Tarantino, Coppola, Sergei Eisenstein, Almodóvar e etc. Mas tudo bem, não os recrimino. Reconheço que a força da mídia hollywoodiana bate qualquer outra do mundo no que se refere à divulgação de suas produções.

As pessoas, no final das contas, se acostumaram a ver tudo mastigadinho, com roteiros estritamente lineares, isto é, o corriqueiro início, meio e fim, tal qual o conhecemos. Também não raro escuto um “não gostei daquele filme, não entendi nada”.

Claro, quando a história é boa, a filmagem, edição e outras coisas são pouco convencionais – casos destes diretores que citei e tantos outros – a obra, para eles, torna-se chata. Pessoal, filme bom é filme que se vê várias vezes, filme em que é preciso usar a cuca, nem que pra isso seja necessário ouvir as explicações do diretor ou mesmo ler algo sobre a história. Fugi um pouco da pirataria pra fazer esse adendo. Volto a ela, portanto.

Eu recorro à pirataria pelo simples fato de não conseguir o que quero aqui na cidade, a não ser por estes meios. Vá numa locadora e peça, por exemplo, 8 e meio, um dos maiores clássicos do Fellini. Cem por cento a resposta será: “Não tem”. Isso se tiver sorte, porque provavelmente o atendente nem saiba quem é Federico Fellini. Mais do que apenas uma crítica a quem trabalha no ramo, trata-se de uma cultura mundial e, especialmente, local.

Como disse o grande Carlos Gerbase, cineasta gaúcho, quando da morte ano passado de dois mestres: “O cinema é entretenimento, mas com Bergman e Antonioni é arte”. E tenho dito!

Texto escrito em janeiro de 2008.

Loucuras de um gênio

Terminei de ler, pela terceira vez, a biografia sobre o Tim Maia. Tal como Noites Tropicais, o livro é assinado magistralmente por Nelson Motta. Eu sempre fui fã do Tim Maia. Agora, então, virei de carteirinha.


Com todas as suas excentricidades, ele é exemplo claro de como os gênios morrem cedo: tinha 55 anos quando morreu. Mais do que Janis Joplin, John Lennon, Jimi Hendrix e Jim Morrison, Charlie Parker. Quem não lembra do clássico: “Mais retorno, mais eco, mais grave, mas side, mais agudo. Mais tudo”. Uma de suas marcas registradas.

A definição da vida de Tim dada por Motta deixa claro: que ficcionista seria capaz de criar um personagem como Tim Maia? E quem acreditaria? Isso é verdade, inegavelmente. Tim foi, nas palavras do escritor, o ser humano mais livre do mundo. Obedecia apenas a sua mãe, dona Maria Imaculada, a quem pedia benção todas as vezes em que tinha de viajar de avião, acompanhado, é obvio, de algumas garrafinhas de uísque 12 anos, seu preferido.

Conhecido por não aparecer em seus shows, ele brincava: “Tim Maia, o artista que mais comparece aos seus shows”, dizia, seguido de uma gargalhada inconfundível.

Talvez poucos saibam como surgiu o rótulo de síndico, popularizado na canção de Jorge Benjor, seu amigo de infância. Tim estava no auge da carreira e comprou um apartamento num bairro nobre do Rio de Janeiro.

Muito pesado, no alto de seus cento e tantos quilos, ele tinha medo de chegar até a sacada para ver o mar. Resolveu, então, trocá-la de lugar. Nesse mesmo local, Tim recém havia se mudado e percebeu que três caras rondavam o prédio. Chamou um de seus amigos, que lhe trouxe uma arma, e Tim começou a dar tiros pra todos os lugares. Os supostos meliantes foram embora.

Noutra oportunidade, ainda temendo por sua segurança e armado, viu pela sacada dois rapazes subindo numa escada. Não teve dúvidas: crivou-os de bala. Mais tarde descobriu que se tratava de funcionários da Telerj que faziam reparos na rede de telefonia. Final das contas: tiraram-lhe a arma, antes que ele e outras pessoas se ferissem. Daí o porquê do trecho da música: “Tira essa escada daí, eu vou chamar o síndico, Tim Maia”.

Outra história interessante – todas elas são, o livro todo é – aconteceu no verão de 1987. Com o Rio de Janeiro vivendo umas das maiores secas de maconha, Tim recebe uma ótima notícia: o cargueiro Solana Star, vindo da Tailândia, tinha encalhado em Angra dos Reis e liberado no mar 14 toneladas de maconha prensada, em latas de dois quilos.

As primeiras, logo na manhã, foram recolhidas por surfistas e pescadores do Arpoador. A notícia se espalhou rapidamente. A maconha que tinha praça era ruim e cara, e a da lata era a melhor que tinha já fumara. E muito mais barata. Rapidamente, Tim enviou um secretário com a missão de “comprar todas que tivesse”. Teve de se contentar com apenas seis quilos do produto. E comprou um binóculo.

Na varanda do apartamento, passava um bom tempo observando o mar da Barra e, caso visse alguma coisa brilhando, começava a gritar e seu ajudante, Zé Carlos, um dos muitos que teve, era enviado imediatamente à praia. Apesar da vigilância, nenhuma lata foi encontrada.

Estes são apenas alguns exemplos de sua vida regada a muito excesso, do qual Tim foi o rei, com todos os entendimentos que essa palavra possa suscitar: de talento, de peso, de genialidade, de drogas, de sexo, de bondade, de generosidade, de explosão e outras tantas mais.

No dia 15 de março deste ano (2008, quando o texto foi escrito), exatamente às 13h03, fará dez anos que o gordinho mais simpático da Tijuca se foi. Mas suas canções vibrantes, com sua voz de veludo, que estremecia onde entrava, continuarão a animar festas, bailes e casamentos de muitas gerações Brasil afora. E, como diz Caetano Veloso, “quero que tudo saia, como som de Tim Maia”.

Texto escrito e publicado no Jornal Minuano, de Bagé, em janeiro de 2008.

Foi a vela, não eu!

Você, caro leitor, já foi acusado injustamente de ter posto fogo em algum lugar com uma vela de aniversário? Pois é. Eu já fui. E lembro bem disso. Devia ter uns 10 anos. Morava no Scyla Médici, conjunto habitacional de oito prédios e centenas de apartamentos quase ao lado no estádio do Guarany Futebol Clube.

Era maio. Inicio da tarde do dia 8 ou 9. Meu irmão, um dia ou dois antes, fizera dois anos de idade. Com direito a festinha no salão do complexo e tudo mais. Aquela época era comum reunir vizinhos e familiares e se empanturrar com doces, salgados, bolo e dançar muita lambada. Isso mesmo, lambada: cito Beto Barbosa, Kaoma e outros artistas com nomes estranhos que, não se sabe como, trouxeram esse ritmo dos confins da Amazônia. Mas voltemos à vela. Ah, a maldita vela!

Em casa, brincava eu com a tal vela, ainda meio suja de bolo, que sobrara do niver do mano. Ascendia, assoprava e apagava a vela; ascendia, assoprava e apagava a vela. Coisa de criança. Mas não era um santo, definitivamente. Mas tinha dez anos, convenhamos. Como todo piá, logo, logo cansei de brincar com a vela. Tinha outras mil coisas pra fazer naquele dia.

Pela ultima vez, ascendi, assoprei e apaguei a vela. Saí do quarto. Antes, porém, bati na vela sem querer. Sem notar, ela caiu acesa atrás de uma cômoda que dividia minha cama do berço do meu irmão pequeno – e único - e pegou fogo na cortina, espalhando-se em seguida por todo o quarto. Meu primo quem descobriu as labaredas. Fora me procurar em casa. Quando perguntou a minha mãe onde eu estava, disse ela: “Acho que está no quarto”. Ele abriu a porta e deparou com o fogaréu. Calma. Meu irmão não estava no berço. Até hoje minha mãe insiste em dizer que sim. Mas ele não estava, juro que não.

Sem saber de nada, fui fazer o que tinha de fazer. Era um adolescente atarefado: jogava futebol, brincava de pega-pega, batia em alguns garotos, paquerava as meninas. Mais tarde, ainda perto de casa, ouvi gritos. Vizinhos corriam em direção ao prédio em que morava. “Fogo, fogo”, gritavam. Fogo, pensei eu!. De onde? Tenho de ir lá ver. Ao chegar próximo do prédio, constatei que o fogo vinha de minha janela. “Como diabos poderia estar pegando fogo no quarto e por quê?.

Ocorreu-me, naquele exato momento, lembrar da vela, com a qual brincara poucas horas antes. Só podia ser por causa dela o fogo. Lógico. Entrei em pânico. Temia que, como de costume, a responsabilidade caísse sobre os meus ombros. Mais especificamente sobre ombros, pernas, braços: afinal a mãe sempre me batia quando eu fazia algo de errado. E quando não, também. A fama de mal feitor me perseguia. Sem méritos, pelo que lembro, mas perseguia.

Prevendo o que me esperava, corri para o primeiro edifício do condomínio, que ficava bem longe do meu. Subi quatro lances de escada e escondi-me no último andar. Subi a pé; sequer havia elevador. Fiquei lá por mais de uma hora. Sorte que não subiu ninguém naquele andar enquanto eu estava. Pela minha cabeça, passavam-se várias coisas: Como será que vou apanhar? Pelo grau do acontecido, minha mãe vai de me bater de chinelo, tamanco ou com um pedaço de pau? Restava esperar. Deixei calmar a poeira e desci para ver a repercussão. Estava assustado. Mais do que perder tudo do quarto, o que parecia ser óbvio (havia bombeiros, gente atirando água de balde e o escambal), amedrontrava-me a represália. Na verdade, a adiava; ela era inevitável àquela altura.

Quando descia em direção ao meu prédio, já desolado, avistei de longe pessoas a apontar em minha direção: “Lá está ele, lá esta ele”, diziam. É o meu fim, pensei... Tudo resolvido, fogo apagado, susto passado, cheguei em casa. A desculpa na ponta da língua, disse, sem tergiversar: “Não foi eu, mãe, foi a vela”. Ela me abraçou. E chorou...

Texto publicado no Jornal Minuano, de Bagé, em janeiro de 2008.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Onde estão os campinhos de futebol?

Nas andanças pela cidade tenho percebido, há tempos, algo que tem me feito pensar e ao mesmo tempo lembrar da infância: onde estão os campinhos de futebol, se a tradição e a paixão pelo futebol, no Brasil, continuam as mesmas? Pois é. Não sei. Talvez eles ainda existam, talvez eu que os esteja notando menos. Talvez.

O local onde morei por muitos anos, por exemplo. Na esquina havia um campinho. Nele, a gurizada e eu jogávamos todas as tardes. Faz um tempo transformaram-no num estacionamento. Mas ainda existem crianças ali. Ah, esqueci: elas devem estar jogando nos campos artificiais, os chamados soccer ou futebol sociate, enfim, têm vários nomes. Sei é que não deixaram de jogar futebol. Quem sabe trocaram pelo computador ou vídeo-game.

À exceção da várzea, que ainda cultua o futebol nos bairros, as peladas em campinho de areia ou grama estão quase em extinção. Alguns falam que é a violência; outros atribuem à internet. Pode até ser. Prefiro acreditar que a criançada continua a jogar, só não vejo onde. Até porque as de menor poder aquisitivo, digamos, sequer têm acesso a essas novas formas de praticar o esporte. Naquela época não havia divisão de classes quando se tratava de futebol.

Quando estudava pela manhã eu jogava à tarde. O inverso se deu quando passei a estudar de manhã. Esperava minha mãe ir trabalhar e correndinho juntava a turma e bora pro campinho. Lembro que ao término dos jogos saía imundo: suado e sujo de terra. Mas contente. Em algumas situações minha avó tinha de me chamar. Ela gritava, com sotaque espanhol, embora falasse na verdade portunhol: “Daniêl, daniêl!”. Por mim ficava o dia todo. Todos os dias. Ao chegar em casa almoçava, tomava banho e ia à escola.

Na volta, adivinhe: campinho, claro. Tirava o uniforme – quase como uma alforria -, colocava um calção, a camiseta do grêmio (na época ela era de uma espécie de lã) e, para arrebatar, o tradicional quichute. Eu sei, não era tão rápido assim: levava um tempinho fazendo mil e quinhentas voltas no tornozelo com o cadarço do quichute para deixá-lo bem apertado. Em seguida, pegava a bola e rapidamente dirigia-me ao campinho do condomínio.

Um campinho bem simples, é verdade: ondulado, cheio de buracos e com as traves feitas de cana, ou bambu, se preferirem. Havia dezenas na cidade melhores do que aquele. Mas não precisávamos de muita pompa. A alegria estava em jogar. Pouco importava o local. O resto era o resto.

Dependendo da época e do campeonato eu era o Sócrates, o Romário, o Renato Gaúcho. Em copas do mundo volvia a ser o Romário, Toninho Cerezo ou o Branco. Às vezes quando dava uma de goleiro incorporava o Pumpido, da Argentina. Variava. Nunca o Carlos, pra quem lembra dele. Que desastre!

O nosso mundo do futebol era esse. Havia também os álbuns. Completei todos do Campeonato Brasileiro e o do Ollé, este continha a seleção brasileira de 1990, se não me falha a memória. Comprava toda a mesada de pacotinhos de figurinha. O Giovane, do Vasco, estampado numa figura meio amarelada com defeito de fabricação era o mais fácil de se tirar: estava em praticamente todos os pacotinhos. Quando não as trocávamos com os colegas, brincávamos de jogar bafo – acho que não preciso comentar o que é. Sempre me dei bem nessa modalidade, diga-se.

Dia desses, num bairro que se pode chamar de periferia, vi dois gurizinhos batendo uma bolinha. Parado, de dentro do carro comecei a observá-los. Fiquei uns cinco minutos fitando-os. Uma vez para cada um ficar no gol. Brigavam. Queriam impor suas vontades de quem seria o melhor, quem seria o Ronaldinho Gaúcho, o Kaká...Dez anos no máximo tinha cada um deles.

Em vez do campinho, uma quadra de cimento. A bola parecia ser das boas, diferente das que usávamos em outros tempos. Em vez do quichute, quatro chileninhos protegiam os pés. Fácil de se machucar. O futebol, o mesmo de sempre. Os personagens, também. Mas as roupas estavam aparentemente limpas: sem vestígios de barro ou pó, provavelmente ainda com cheiro de amaciante. E o campinho: mais uma vez não estava lá...

Crônica publicada no Jornal Minuano em 2007. Mas ainda vale. Sobretudo em tempos de copa.
Em tempos de copa do mundo e de escalação um pouco controversa da seleção, não poderia deixar de homenagear o mestre da crônica esportiva Armando Nogueira. Boa leitura.

A Copa dos Meus Sonhos - Armando Nogueira




A Copa dos meus sonhos tem Garrincha, tem Mathaus, tem Gullit e Platini;

A Copa dos meus sonhos tem a graça do passe de conta, a picardia do drible de ponta e só gol de gente que apronta;

A Copa dos meus sonhos tem chutes de todas as cores: branco, vermelho e laranja, mar azul de Maradona, verdes pés de Nílton Santos;

A Copa dos meus sonhos tem cheiro de grama fresca nos passos de artilheiro, lua cheia nas mãos de Yashin;

Na Copa dos meus sonhos a bola encobre o goleiro, arco-íris deitando sem pressa nas malhas do coração;

A Copa dos meus sonhos é a dança serpentina de Milla, veludo feitiço nos dribles de Mané;

A Copa dos meus sonhos tem bola que chora e transpira, bola de primeira e dividida. Bola sonsa de Didi, bola santa de Pelé;

A Copa dos meus sonhos só não tem bola que sangra;

A Copa dos meus sonhos tem gazeta no colégio, tem hino e papel picado e delírios de bandeiras no templo da fantasia;

A Copa dos meus sonhos tem súplica e desespero, esperança e blasfêmia pelos quatro cantos do mundo;

A Copa dos meus sonhos são todas as copas que vi e todas que ainda verei no indizível caminho da bola, que não tem começo e não haverá de ter fim.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A nossa "Londres"

Toda as vezes que vou a Pelotas – e têm sido muitas nos últimos dois anos – percebo um ar meio europeu a pairar pela cidade. Nunca fui à Europa, que fique claro.
Quando falo da Europa, refiro-me a Londres, mais especificamente. Todos sabem que se trata da cidade mais úmida do mundo, ou uma das. Pois Pelotas, ao que sei, é tida como a segunda mais. As noites por aqui são meio londrinas. Esclareço: meu conhecimento de Londres vem dos filmes, livros, televisão, etc.
A diferença daqui pra lá é que até então aqui não apareceram Jacks estripadores ou lobisomens americanos. Menos mal. Até gosto de lobisomens, mas de retalhadores de gente, não. Se bem que ambos têm um quê de magia, mesmo que retratados para o mal. Ah, também não tenho notícia de Sherlok Holmes por essas bandas.
Voltemos à londrinidade de Pelotas. É uma sensação meio estranha andar pela cidade e ver aquela névoa rondando os espaços. Bonito, mas sombrio. As coisas parecem se esconder ou camuflar-se. Os rostos, todos, ganham contornos de uma áurea oculta. As pessoas andam como se estivessem sendo perseguidas.
Deve ser o lado negro do pensamento a imaginar os lobisomens ou estripadores. Ou, numa versão mais moderna, os nossos estupradores, assaltantes ou viciados em crack, querendo fazer as vezes de monstros de outrora. Sei é que as pessoas fogem. Andam acanhadas.
Os carros passam com seus vidros embaçados. Dão a impressão de terem nuvens por dentro. Cruzam as ruas desertas. As luzes nos postes ficam envoltas em um ar estático. É uma das poucas vezes em que se pode ver o ar. Espesso, quase tétrico.
A diferença noturna entre as duas cidades, porém, só guarda semelhança no clima. O resto é bem distinto. Pelotas é uma das cidades mais tradicionais do Rio Grande do Sul no que se refere à história do Estado, às charqueadas, as revoluções. Londres dispensa comentários: é uma das tradicionais do mundo, do novo e do velho.
Aqui, no entanto, criou-se nos últimos tempos a cultura de se ouvir pagode. Seja nos pubs, nas boates e etc. Lá, assim espero, ainda ouvem-se Beatles e Rolling Stones. A discrepância é absurda. A névoa que cai por aqui bem que poderia vir acompanhada de alguns costumes londrinos, musicalmente falando. Bem que ela poderia ser importada, digamos.
Sei que isso tudo é influência dos meios de comunicação, do mainstream, dos jabás, da cultura pop, etc e tal. Pouca gente, acredito, ainda escuta seus conterrâneos Kleiton e Kledir, Vitor Ramil, por exemplo. Não reverenciam mais a Pelotas de ontem, sem ser nostálgico e sectário. Não sabem mais a história do café Aquários do Satolep de Ramil ou dos Simões Lopes. Pelotas tornou-se a mesma coisa, mais do mesmo. Até um bar da cidade, que até por onde sei não toca músicas de gosto duvidoso, tem nome de Nova York.
A única relação com Londres, no final das contas, é que aqui ainda tem clima londrino e o português – como lá, o inglês - é falado com sotaque de antigamente.

Lembranças não vividas

Tenho um gosto amargo na boca
Da vida que levo, da vida que espero
Tenho saudade daquela moça
A conheci dançando bolero

Procurei por ela uma vida inteira
Amei amores diversos
Amei à minha maneira
Mas só a descrevo em versos

Palavras de um nunca ter tido
Coisas que não passam ao léu
Queria ser mais que um amigo
Ter colocado-lhe o véu

Lembro de tempos que não vivi
Como é possível recordar assim
Desde a única vez que a vi
Deixou rastros eternos em mim

Ainda lembro de ti

A quantas anda teu coração
Consegiu viver sem mim
Ou morreste em vão
Sei que ainda estás a fim
Carrega contigo o pavor do perdão

Deixei de ter amar algum tempo atrás
Morreram os sonhos e o sabor do prazer
Ficaste no pensamento que só a memória traz
Sozinho no meu canto ainda consigo viver

Esses tempos me parei a pensar em nós
Não tive lembranças nem disabores
Apenas escutei tua voz
Na companhia de outros amores

A vida é assim
Esconde surpresas imponderáveis
A tortura nos conduz ao outro, enfim
Vivemos momentos irreparáveis

Os tempos são de mudança
Caminhos irregulares não se cruzam
A estrada encontra no ar uma dança
Dores de amor só me abusam

Não tenho mais papel

Ainda escrevo. Apenas troquei a folha em branco por uma luz também branca com formato semelhante ao do papel, só que ligada na tomada. Não uso mais borracha; não uso mais lápis ou caneta. Aperto um botão e pimba: está tudo ligado, como num passe de mágica.
Continuo a ir em livrarias só pra comprar folhas de papel. Nunca mais nenhuma delas teve o meu traço. Elas são riscadas por uma tinta preta ou colorida que sai de outra maquininha também acionada por um outro botãozinho. Mas será que eu ainda escrevo de fato? Ou será que apenas coloco ideias rápidas – cada vez mais – dentro de um retângulo ligado pelo botãozinho? Meus dedos estão bem exercitados. Pelo menos isso.
Pensando bem acho que agora simplesmente digito pensamentos. Transcrevo aquilo que minha mente consegue distinguir dentre os vários acontecimentos de um dia repleto de informações aleatórias. Não sei como, somente faço. Uma coisa é certa: não tenho mais pensamentos pequenos, simples, cotidianos, mas importantes.
A vida permanece local, óbvio, mas totalmente globalizada, diriam alguns próceres do novo liberalismo. Nunca mais reparei nas crianças brincando na praçinha. Esqueçi como é olhar um menino jogar futebol num campinho sem grama. Até nos momentos em que fico só, sou bombardeado por apelos visuais-estéticos.
A televisão me diz o que preciso ter e o que não posso ter. O que preciso ter, para eles, é o que a maioria das pessoas nunca poderá ter. Roubaram-me o tempo interior; meus devaneios íntimos. Meus anseios não são mais meus; devem estar vagando por algum inconsciente do espaço cibernético. Muitas vezes custo a me reconhecer no espelho; não o do Narciso; o puro e simples reflexo pelo reflexo. Ou melhor: a me conhecer. Algum dia devo ter sabido quem de fato eu era ou fui.
É dificil fugir do emaranhado de conceitos que relativizam ou deixam em dúvida a nossa existência. Mesmo a leitura, o conhecimento, nos deixam cheio de perguntas, para as quais não há respostas. Menos mal: prefiro estar cheio delas a achar que tenho todas. O lugar onde escrevo continua a ser branco; como o branco que nos dá antes de uma provação a esperar ideias que tenham um mínimo de nexo em meio à sociedade em que vivemos. Uma divagação sem fim sobre tudo o que se espera um dia faça sentido.
Mas porque diabos as coisas precisam ter sentido se o mundo em que se vive não faz o menor sentido? Você precisa casar, ter filhos, essas coisas, alguém me disse um dia. Mas por que preciso? Porque socialmente e biologicamente os humanos são feitos pra isso? Por que eu preciso ser feliz? Quem acredita em felicidade a não ser a propaganda?
Eu uso aquele sabão em pó, mas não vejo tudo mais branco; a não ser o espaço que fica na minha frente cada vez que tento dizer algo a mim, a todos ou a simplesmente ninguém; assim como as folhas que guardo na gaveta ao lado: limpas, brancas, impecáveis.
São novas como um dia a Amazônia foi antes do desmatamento. São brilhantes como o céu um dia foi antes da poluição. São parceiras e ficam juntas como um dia foi esse mundo onde você está. Um dia, é provável, tudo desaparecerá: eu, você, o mundo. E as folhas de papel nunca mais serão brancas como ainda são neste momento. Elas, não!

Nossa rua

A nossa rua não tem mais aquele cheiro
Estamos sozinhos nesse confim
Aquilo tudo não volta de novo
As esquinas perderam seus rostos

É tudo para um lado só
As placas estão ao contrário
A direção perdeu seu lugar
Não vejo amigos, não vejo otários

Que rua sombria é essa
Recordei de quando menino
O tempo passou de repente
Não tem presente, não tem futuro

O que nos resta é sentar
Em algum banco que ainda exista
Nesse mundo ávido e lívido
Da solidão de um artista

Quem sabe melhora em seguida
Não acredito no Apocalipse
Temos que ser otimistas
Afinal, tentamos ser poetas

Fantasia e realidade juntas
Não desgrudam sequer um minuto
Parecem até prostitutas siamesas
Dançando sobre as mesas

Dos botecos de quinta
Com frequencia diária
Toda semana é mais um dia
Que nossa rua teria

Sai dessa, meu bem

Descomplique as coisas, meu bem
Seja você, você mesmo
E mais ninguém

Atira tudo pro alto
Se essa for sua vontade
Desça, saia do salto
Pra renasçer não tem idade

Não adianta ficar calada
Engolir a saliva pode engasgar
Muito menos ficar deitada
Melhor é cuspir tudo, vomitar

Vai por mim, meu bem
Para de segurar esse grito
Sai desse vai e vem
Me acompanha no agito

A timidez é questão de tempo
Já estou acostumado a te ver
Reprimir demais o pensamento
Algo que só faz sofrer

Tira essa gravata sem nó
Pinta meu sonho do avesso
Entra na minha cabeça sem dó
Assim nunca mais te esqueço

O terreno está pronto
Basta que você me sinta
É só bater o ponto
Mas, por favor, não minta


Letrinha de música. Pra descontraír.

Que juventude é essa?

Onde estão os jovens de agora
Ficaram nos anos 90
Impregnados de lixo de fora
Não falam, não pensam

Devem estar escondidos
Por detrás de um documento
Contrariando Caetano, perdidos
Ou em arranha-céus de cimento

Que juventude é essa
Nascida no auge do grunge
Ouvia Nirvana sem pressa
Agora consome enlatados Bunge

Estão fadados ao fracasso
Profissional, talvez não
Da criatividade do traço
Ao rancor de viver em vão

Não ganham mais as ruas
Preferem o egoismo cibernético
Têm o aval das peruas
Que bebem junto energético

De politica, não entendem
De amores, correm
A consciência repreendem
Ao final, todos morrem

Semelhança com Que país é esse? não é mera coincidência. Seria uma versão mais atualizada, digamos.

O sol mostra o dia

As portas do castelo se abrem
Morcegos viram vampiros
Vampiros viram carneiros
E os homens se tornam guerreiros

A ilusão cresce na alma
Como a água bate na pedra
É um susto absurdo
Para levar sua calma

Espíritos sem luz vagam
Pela noite cálida e límpida
Transformam emoções em farpas
Deixando a escudirão mais tímida

Um raio de sol mostra o dia
É hora de ir embora
Deixar sensações etéreas
Pairando na relva lá fora

Nunca pedi perdão

Parece que o céu despencou sobre a minha cabeça
Fiquei cego de tanto de enxergar
As mazelas que tentam esconder
No olhar sincero do porteiro

As ruínas não estão mais empilhadas
Sinto cheiro de carne
As bombas ficaram no passado
Os corpos, espalhados, refletem o que sentes

O enxofre que polui é o mesmo que sorvo no café da manhã
Levanto mais leve, mais forte
É apenas mais um despertar
Talvez o cheiro seja meu, talvez o cheiro seja nosso

As árvores começaram a cair
As folhas estão todas negras
Mas o filme não é mais em preto e branco
Está todo em cores

E pode ser visto no mundo inteiro
Na janela do meu quarto
Na cama
Ou no armário do banheiro

Porque o dia ainda é assim?
Porque o poeta inventou a canção?
Porque ela continua a ser musicada sem nenhuma razão?
Porque a gente sofre demais e não pede perdão?

Entre o céu e a terra

Vê aquela palavra escrita lá em cima
É apenas um pedaço do meu amor
A forma que encontrei de fazer a rima
Pra você provar do sabor

Pode não ter nada de tão fascinante
Podem ser apenas letras a dar um sentido
Ou formas alheias num céu verdejante
Querendo encontrar um abrigo

É uma expressão simples, eu sei
Não sou Neruda nem Raquel de Queiroz
Sei que para os mestres diria, tentei
Ao menos fala algo sobre nós

O verso não está tão perto
Quero que busques no horizonte
Mesmo que atravesses o deserto
E bebas água nessa fonte

Sei que não há asas
Para voar como passarinho
Apenas liberte as amarras
Que te esperarei no meu ninho

Posso ser o teu elo
Entre o céu e as estrelas
Onde estão escritas as palavras
Não são azuis, são vermelhas

A cor que dizem ser da paixão
Repetida nos clichês dos cartões
E também na do coração
Escondido nos porões

Masmorras que me prendem pra sempre
Correntes advertidas por todas as partes
Que não me soltam, nem tentam
E nunca me deixarão saber se chegaste

Um pobre homem

Não tenho preferências por cor de pele ou cabelo de mulher. Gosto delas, e ponto. De todas, sem distinção. Mas aquela menininha arrasou meu coração. Tinha o andar leve; pernas finas, mas lindas; o olhar penetrante; seios avantajados; voz de veludo; corpo escultural. Hipnotizava-me a cada fitada. Caía a seus pés.
A beleza nela era algo singular. Toda vez que a via saltavam-me os olhos; sentia um misto de desejo com ternura; de paixão com devoção (não devoção cristã e nem de subserviência). E ela sabia disso. Aproveitava-se, inclusive. Pedia-me tudo; eu fazia mais um pouco. Sem pestanejar. Pode parecer loucura. Devia ser mesmo. De minha parte não havia razão, só emoção; não havia amor próprio, só amor a ela, e em dobro.
É nestas horas que se vê o poder das mulheres, o fascínio que elas podem causar num pobre homem. Sentia-me um pobre homem, de vez em quando: pobre por amá-la tanto; pobre por achar que não suportaria viver sem ela. E realmente, naquele momento, não conseguia. Havia algo de magnético, de astronômico. Quem sabe ela fosse a lua?
Nunca tendei entender o que se passava. Talvez não quisesse. Bastava-me estar ao seu lado; às vezes acordar ao seu lado; às vezes pensar que em algum momento estaria ao seu lado. Nunca fizemos planos; apenas vivemos os momentos: bons e ruins, é claro. Mas ela me deixou. Foi embora sem sequer dar adeus. Nenhuma explicação, nenhuma divagação, nenhum “eu te amei, mas tive que ir”.
Aquela menininha ainda povoa minha mente. Penso o que teria sido de mim se ainda estivesse com ela. Imagino filhos correndo num quintal florescido; uma casa grande com vista para o mar e nós dois, apaixonados, banhando-nos num oceano qualquer; vivendo de amor, como em alguma história com final feliz e sem os desprazeres da vida real.
Pensando bem, agora sem ela, com o passar dos anos me tornaria apenas um pobre homem; e velho, muito velho, porque teria amado mais do que deveria. Seria pior do que o mestre Gabriel García Márquez: ficaria sem as grandes obras para a posteridade e sem a memória das putas que nunca tive, mesmo que elas fossem tristes.

Do tédio à alegria

A forma vertical do sol refletia na parede esquerda do quarto e dava-lhe a impressão do início da manhã. Mais uma. Os pardais, muitos, cantarolavam, mas eram abafados pelo barulho dos carros. O velho relógio de metal no canto do bidê fazia tic-tac, tic-tac...marcava seis horas.
A rotina enfadonha a obrigava ao ofício. Ela procurou debaixo da cama os chinelos de cor rosa, colocou-os, ajeitou o chambre carcomido e levantou-se. Espreguiçou-se até atingir a envergadura de um arco. Realmente estava cansada. Queria permanecer deitada por dias, mesmo que acordada. Incomodava-a, isso sim, o pensamento de estar no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, há 20 anos.
Olhos entreabertos ela enfim deu alguns passos. Não acreditava que mais um dia o mundo havia de tirar-lhe o prazer de estar consigo mesma. Sozinha, mas preenchida de si. Próxima à janela ouviu lá fora um guri que gritava com a voz já rouca pela insistência: - “O Dia, O dia”, edição de domingo....

A subserviência

Sempre que Marcelo pensava em fazer algo, por mais simples que fosse alguém dizia: “Não faz, Marcelo. Deixa pra outra hora, não é assim”. Marcelo não se irritava com os cortes que lhe davam. Embora tivesse conhecimento de seu problema. Era um sujeito pacato, digamos. Para tudo. Colocava manteiga no pão e vinha uma voz: “Por que não coloca requeijão?”. Marcelo fazia outro e colocava.
Ele não tinha vez. Acostumara-se a ser assim. Marcelo trabalhava havia cinco anos como supervisor de estoque numa pequena empresa do ramo de alimentos. A vida resumia-se em saber quantas caixas de leite haviam sido vendidas no dia, quantas latas de creme de leite teriam de ser repostas nas prateleiras. E só.
Mesmo coordenando um setor, Marcelo mais recebia ordens do que mandava. Sua opinião pouco valia. Todos os seus subordinados achavam-se em condições de lhe dizer como fazer as coisas, embora ele que, em primeira instância, deveria determinar as atividades de cada um.
Marcelo falava com um funcionário:
- Quem sabe colocamos estes produtos aqui em cima.
Funcionário respondia:
- Mas senhor Marcelo, penso que aqui em baixo seja melhor.
- Tudo bem. Aí está bom mesmo, replicava Marcelo.
Aparentemente, sequer ocorria a Marcelo a possibilidade de mudar: de ser diferente, dar outro rumo à vida, impor mais suas idéias, ser ouvido e fazer o que lhe desse vontade. Solteiro, ele tinha mais de 30 anos. Não era mais uma criança. Morava sozinho havia quatro anos numa pensão com quarto e banheiro. Preferia assim. Deixara a casa dos pais para “ter mais privacidade”.
Mas uma privacidade difícil de entender. Porque as mulheres o deixavam nervoso; ao vê-las, sentia um misto de desespero, suor e prazer; elas também mandavam nele, claro.
Fora criado com duas irmãs e uma prima, e várias tias também; a maioria separada ou viúva. Daí, talvez, viessem o medo das mulheres e a subserviência à população do mundo. Nunca tentou saber a explicação. O pavor tomava-lhe o corpo cada vez que uma pequena se aproximava. Marcelo as chamava assim: pequena. Sentia-se íntimo das mulheres, embora quase nunca chegasse perto delas.
A Flavinha, sua vizinha de porta, por incrível que pareça não lhe despertava essas sensações de repulsa. Cruzavam-se de vez em quando. Olhavam-se de vez em quando. Marcelo só sabia o nome: Flavinha. “Ahh, Flavinha...”, pensava. Mas queria saber mais. Precisava.
Por algum motivo que não tinha idéia qual ela era diferente. Tinha de ser. Não bastasse tudo, Marcelo era tímido. Flavinha, não; dava pinta de safada. Num dos encontros pelos corredores ela vinha do supermercado com dezenas de sacolas. Marcelo teve vergonha de oferecer ajuda. Ela encarregou-se de pedir:
- Pode me ajudar com essas sacolas?
Marcelo, gaguejando e suando:
- Cl...aaaro
Para agradecer, Flavinha, que nada tinha de tímida, ao contrário dele, o surpreendeu:
- Quer jantar comigo esta noite?
Marcelo ficou mudo por alguns segundos e respondeu com outra pergunta:
- Eu?
Flavinha, de novo:
- Claro, você mesmo!
Molhado de suor como se tivesse tomado um banho de chuva, ele disse:
- Sim, quero sim...
Ela marcou para as nove horas. Em ponto. No horário, Marcelo batia à porta. Ele tentava controlar-se, mas já estava novamente suando e tremendo. Havia tempos uma mulher não fazia parte de seu dia-a-dia. Esquecera a ultima vez.
Flavinha abriu a porta. Vestia uma calça jeans justíssima e uma blusinha azul tomara-que-caia. Recém tomara banho. O perfume e o cheiro do sabonete pairavam no ar. Marcelo entrou. Deram-se dois beijinhos. Flavinha convidou-o para sentar. O jantar estava pronto: macarrão à bolonhesa. Comeram praticamente sem trocar uma palavra. Tomaram vinho. Duas garrafas.
Ao longo do percurso etílico, começaram a conversar formalidades: trabalho nisso...sou de tal lugar...tenho tantos anos...gosto de fazer isso...Mesmo discreto Marcelo observava o corpo escultural de Flavinha. A calça marcava-lhe a silhueta: - Um violão, pensou ele. Estavam lado a lado naquele momento.
Entorpecidos pelo vinho ela deu-lhe um beijo. Acanhado, ele retribuiu. Bastaram alguns segundos para que roupas começassem a voar: sapatos, calças, blusa e camisa, enfim, peças íntimas. Ela começou a pedir-lhe coisas estranhas: me bate..me chama disso...me chama daquilo... Marcelo entrou no jogo. Afinal, ser mandado era, digamos, sua especialidade. Ele a amarrou, a pedido dela. Fizeram amor por horas. Ele descobrira nela uma mescla de ninfomaníaca com sadomasoquísta. Exaustos, deitados e quietos, Marcelo rompeu o silêncio. E gritou: - Estou curado...!

Texto escrito em 2007

A desconfiança de Carlos

Carlos era um cara desconfiado. Achava que todos o perseguiam. Desde criança foi assim. Olhava com receio para os que se aproximavam dele. A família não o entendia. Mandaram-no a psicólogos, psiquiatras, médicos de todas as especialidades, só faltou ser estudado pela Nasa. Nada adiantava para Carlos. Seus pais perderam as esperanças. E disseram:
- Deixa que viva assim, o Carlos. Talvez a vida o modifique.
Sem chance. A vida só o fez piorar. Aumentaram os medos, as dúvidas. Uma vez na escola Carlos quase estrangulou um garoto por pensar que ele estava espionando-o e que mandaria informações suas para os extraterrestres.
A cada ano que passava Carlos ficava pior, e pior e pior...As pessoas começaram a evitá-lo, tal era sua loucura. Já não tinha mais limites. No supermercado, brigava pelo troco de um centavo, sempre alegando e tentando confirmar que queriam passá-lo para trás.
Dizia ele:
- Olha! Viu como ela tava querendo me roubar.
Sua mulher:
- Pára com isso, Carlos. O que você faria com um centavo?
Retrucava:
- Ué, juntando, juntando, se faz alguma coisa...
Até com os filhos reagia desta forma. Ligava para a escola e perguntava se realmente haviam pedido tais materiais, etc...Alguns o chamavam de sovina, mão-de-vaca. Carlos sabia que não se tratava disso.
Tinha sérios problemas, mas eram mais fortes do que ele. Tornara-se um chato. Sua sala no escritório de contabilidade em que trabalhava era fechada a cadeado. Ninguém tinha acesso. Nem o patrão. Caso precisassem de alguma coisa no final de semana, por exemplo, Carlos saía de casa e providenciava. Mas só ele.
Tanto era o grau de descontrole que a vida familiar ia de mal a pior. Perdera o respeito dos filhos. Ele e a mulher só brigavam. Carlos sempre acreditava estar convicto de suas atitudes. Pensava que fazia a coisa certa. Todos tinham culpa: o governo, os bancos, os donos dos monopólios, até os pobres e desempregados, que roubavam dele indiretamente por meio de ajudas que vinham de seus impostos.
O convívio estava insustentável. A mulher não o agüentou mais. Resolveu separar-se de Carlos. Na justiça, ela levou os filhos e a casa em que moravam. Carlos ainda teve de pagar pensão. Sozinho, num quartinho conjugado num hotel qualquer, ele parecia finalmente ter se dado conta do que fizera:
- Eu sempre tive razão...

Texto escrito em 2007. Primeiro a ser postado no blog.