terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Por aí

Não quero nada de volta. As pessoas que deixei, as que me deixaram, as que deixamos e conquistamos a cada instante maluco. Tenho um pouco de mim em tanta gente que anda por aí. Como tatuagens internas, que só as pessoas com quem se convive sabem. Velhos amores, alguns dissabores, doces lembranças, dores diversas. Os amores se vão. Tudo se vai. O fim é o sempre. Absoluto como rei das coisas. Eu só acredito no fim. Com o resto, eu me viro, e vivo intensamente até chegar de novo ao novo fim. Mas eu me desenho eternamente dentro de você e você em mim. Mesmo que a gente saiba sobre o fim de tudo que há na vida. O fim e o ponto. E assim eu vivo: consumindo e sendo consumido. Até encontrar um fim que me baste.

Um nada

E quando, de um lado, a pele bate: corpo com corpo, rosto com rosto, boca com boca, sexo com sexo. E quando, de outro, a face se mostra: careta, estampada, desmarcada, despida de si, violável. O caminhar nem sempre é pra frente. A pele pode esconder o que está lá dentro. Há algo mais forte do que a extremidade. Um calabouço de sensações que se junta e faz o sangue fervilhar. Momentaneamente. É quando os olhos não enxergam mais. A cegueira vem confusa e atrapalha todo o resto. Engana quem quer ser enganado, deturpa o que mentia ter algum sentido. E quando meu jeito lhe foge. Eu sumo e deixo vagos vestígios. Não quero ser encontrado. Desisti de viver à deriva. Afundei em meu mar de pensamentos idílicos. Estou lá no fundo: escuro, breu, rasteiro, sorrateiro. A claridade me dói. O cheiro das rosas, aquele do campo onde andávamos, usurpou-nos. A paixão suave virou número fácil, recordação terna. O passado acumulou-se, lá no fundo; tornou-se escasso; presente guardado, novo e empoeirado. Nada ainda é demais. Aquele nada iludido. Realidade construída, moderna em excesso. Estou velho há mais tempo; tornei-me. Estou cheio de nada, de um nada cheio. Um nada meu, só meu. Nem tão simplesmente, talvez de repente. Mas um todo nada. Tão e somente.

Exteriorizar-se

Eu não me vejo pelos meus olhos. Não consigo mais me enxergar. Perdi meu reflexo. Agora sou caricatura de rua. Um desenho de mim mesmo. Agora estou cansado. Estou muito cansado. Sinto que estou engasgando. As palavras que não digo arranham minha garganta. As que digo, não fazem sentido. Estou perdendo os sentidos. Estou desorganizado por dentro. Parei de sentir. Parei de chorar. Parei de respirar. Parei de rir. Parei...parei...Estou me deixando. Tenho de me ver de fora. Tenho de ver o que não tem sentido em mim. E o que faz muito sentido. Quero um caos menos conturbado. Quero me poluir e depois me expelir pelos poros.

Teu corpo

A forma sinuosa do teu corpo é inevitável até para um pensamento vão. Contorno que marca, gosto que mata sem dor. Teu corpo se apresenta do jeito que eu gosto: desperto, despido, descoberto, faceiro. Impossível desgrudar do teu corpo. As mãos, as minhas, têm vontade própria quando tocam teu corpo: elas são a melhor expressão do que as palavras não podem provocar. Teu corpo é o esboço fiel da felicidade do corpo; de pelo menos outro corpo, o meu. Teu corpo é esnobe, é desfaçatez, é transgressor. Teu corpo não é minha paz, não quero que seja. Teu corpo é o canal por onde transbordo meu excesso de falta do teu corpo. Teu corpo é só teu, e por isso sempre o quero um pouco mais.

Hoje

Hoje deixarei que a vida faça algum sentido. Hoje formarei versos fáceis só para agradá-los. Hoje acordarei cedo e darei um beijo em quem estiver do meu lado. Hoje tomarei café da manhã e lerei o jornal. Hoje serei o mesmo de sempre e acreditarei que tudo é normal e tranqüilo ao meu redor. Hoje olharei a miséria e colocarei a culpa em alguém. Hoje caminharei pela rua e contemplarei a natureza que ainda me resta tácita. Hoje voltarei para o lugar onde nasci. Hoje serei a criança que um dia vi partir. Hoje serei qualquer coisa que os outros achem bonito. Hoje terei a cara de todos vocês. Hoje, enfim, não serei nada. Mas parecerei ser tudo. Como ontem, como amanhã. Todos os dias, todos iguais, que julgam não serem os mesmos. Hoje será sempre tudo igual a ontem, igual a amanhã, igual a você. Igual. Por mais que tentem ser diferentes. Hoje, serei assim. Amanhã, me reescreverei novamente.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Amores vãos. Vivo-os. Se vão. Precisos.
Faltam-me todas as coisas que já tenho.
Às vezes necessito ser criança. Fugir dessa confusão adulta de tristezas e fobias.
O excesso me causa estranheza. Demais é como a falta. Sou um só. E acho que meu. Por vezes canso de mim mesmo. E me abandono. E me resgato.
Sempre sou mais do que suporto. Em tudo. Não caibo mais em mim. Me sobro. Me derramo. Me espalho. Junto só o necessário.

domingo, 17 de outubro de 2010

E se

E se o sol não for quente o bastante para me aquecer? E se a lua não for clara o bastante para iluminar a minha escuridão? E se a flor não for colorida o bastante para pintar meu dia? E se os caminhos da vida forem tortuosos? E se eu perder o chão que conserva meus pés no lugar quase certo? E se eu sonhar que meus sonhos são impossíveis? E se tudo por aqui for amargo demais para ser provado? Ainda assim nada disso importará. Porque você, para mim, tem a indelével destreza de conseguir ser todas as coisas, belas e impuras, do meu mundo.

Esvai-se

O último pingo escorre pelo rosto cansado. Desce lento, contornando os olhos fundos e tristes. Cruza o canto esquerdo da bochecha áspera de menina envelhecida. Tudo em volta tem aparência de árvore de galhos secos. Só o último pingo se encarrega de dar um pouco de vida àquela face jovem e transtornada. A pele tenta sugar, com todas suas forças, aquele suspiro sem ar. Em vão. O pingo segue a escorregar por entre as rasuras da tez sofrida. Aproxima-se da boca desidratada. Contorna o que um dia teve formato de coração vermelho. Passa pelo queixo marcado como a ferro de marcar boi. Pendura-se na extremidade baixa do rosto. Cai sobre o colo magro e de roupas esfarrapadas pelo tempo que não o dela. A menina ofega uma respiração temerosa, pressente que algo se encerra. A lágrima para. Fita-a, a menina. Não existe outra. Começa a evaporar. Olhos entreabertos. A lágrima se esvai, apaga-se devagar como o fim da fogueirinha de criança. Pálpebras pesam moribundas. O pingo seca. O corpo também.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Quase isso

Uma vida que se lhe escapa pelo meio dos dedos. Mundos agora distantes. Apartei-me, por um tempo. Havia baixado meu Q.I, como diria Caio Fernando Abreu. Mas, mesmo assim, trouxe comigo aquela flor de plástico que lhe prometera; está cada dia mais murcha; espero que não seja a representação estética do sentimento, daquilo que não se dizia sentir: por medo, insegurança, fraqueza, sei lá.
Uma vez disse ou pensei ter dito: torno-me criança, quase infantil, quando amo. Tento ser centrado, adulto; não consigo. Expressar-me, por meio da palavra escrita, sempre foi mais fácil. As letras assim, no entanto, parecem meio vazias. Nunca li para você um poema meu.
As ideias vêm, simples, e formam frases quase belas. O problema é não praticá-las; perdem o sentido. A melancolia é algo rotineiro: taciturnas como são as pessoas que amam. Felicidade é uma ilusão, vai e vem.
Escrever deve ser uma forma de proteção, uma cortina para, entre atos, tentar esconder a desilusão. As cenas se repetem; o teatro está ficando velho, às traças. A plateia, pouco a pouco, deixa seus lugares: vai viver sua realidade mascarada.
Esse deve ser o verdadeiro palco. Quem imita quem, afinal de contas? Eu o imito, você me imita? A quem copiamos se, no fundo, todos queremos ser nós mesmos?

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Queria

Queria querer menos. Queria esperar a lua se por. Queria sentir a próxima chuva. Queria voltar a ser criança só mais uma vez. Queria do cacho apenas uma uva. Queria um simples toque no cabelo. Queria uma voz rouca e amiúde. Queria ser acordado com um beijo. Queria descompassar o coração. Queria ouvir aquela canção. Queria alimentar todas as bocas. Queria que as coisas não precisassem de razão. Queria cabeças um pouco menos ocas. Queria que as moedas das fontes acabassem com as guerras. Queria que a vida não fosse tão tosca. Queria mulheres femininas e feministas. Queria ver alguém ser homem suficiente para ser mulher. Queria amores menos fugazes. Queria tomar seu caldo de colher. Queria rostos sinceros nos cartazes. Queria às vezes estar morto. Queria quase sempre ser louco. Queria de vez em quando seu corpo. Queria todo dia um pouco.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Corpo

Histórias velhas. Quero me afogar nas ondas que já passaram. Nas marés que já desceram. Nos ventos que deixaram apenas rastros de sua fúria. Fotos não me bastam. Anseio vozes, rostos, gestos, toques. O sentimento é mais profundo quando nada fica. Partilhei um pedaço da vida para preencher o outro, que é vazio. Um espaço de tempo em que me encontrar significava não olhar para o relógio que marca a mesma hora todos os dias. Às vezes tenho vontade de reconhecer amores que deixei passar. Abrir os olhos para corações que maltratei. Ressentir-me da ausência de todos os amores que não conheci. Às vezes a vontade é de me somar, ser mais do que um, ser cálculo, ser ganho. Ao mesmo tempo. Mas estou perdendo as forças do corpo. Fumo um cigarro na janela entreaberta. Na noite, da pra ver melhor que a fumaça que se esvai parece levar consigo algo parecido com o que chamam de alma. Não sei. Não acredito muito nisso. Ela nunca se mostrou pra mim, a alma. A cada tragada tenho a impressão de que essa fumaça que ponho pra fora carrega um pouco da agonia que tenho de viver. Encolho-me no meu corpo. Crio uma prisão cujas grades são pensamentos aflitivos. Sinto a sensação de que grito por dentro. Algo em mim pede socorro. Mas meu corpo está surdo. Meu corpo só se expressa com palavras. Corpo de letras soltas e desejos atônitos. Corpo de amores escritos e pouco vividos. Corpo invisível e candente. Meu corpo verbo. Meu corpo antigo e passageiro. Meu corpo velho e rasteiro. Meu corpo carona. Corpo de espinhos. Meu corpo que agora enxergo exposto. Sem rosto, sem toque, sem gosto. Meu corpo miragem. Corpo translúcido. Meu corpo certo. Corpo de amores ligeiros. Meu corpo amante. Meu corpo faceiro. Corpo distante. Meu corpo atrasado. Corpo relutante. Meu corpo torto. Meu corpo, seu corpo. Nosso corpo. Enfim, um corpo. Sem alma. Só corpo.

sábado, 4 de setembro de 2010

Eterna como dizem da alma

Na mente tudo é sondável, variável, volátil. Na vida tudo passa, segue, anda como tem de andar. Os segredos se perdem; os desejos se vão; o amor chora, limpa suas lágrimas e está pronto para chorar de novo.
As lembranças boas ficam na memória, as más são deixadas de lado como música ruim. A história de amanhã nem sempre é a mais nova; um futuro próximo do qual nada sabemos, mas tentamos imaginar. A eternidade dura até que venham outras. Igual a um passageiro sem destino a esperar pelo próximo trem para lugar algum.
Há, porém, algo na vida que tem o poder de eternizar momentos; tanto aqueles que queremos guardar para toda a vida, quanto os que guardamos em lugares escondidos para que não mais sintamos a nostalgia do tempo que passou.
Às vezes esses momentos vão parar em gavetas empoeiradas, em álbuns velhos, já quase sem face. Mas quando são descobertos, muitas vezes anos depois, se tornam novamente o presente. Esse talvez seja um bom ponto de vista sobre a fotografia. Afinal, são as interpretações da realidade que fazem da fotografia uma expressão artística única, mas nunca a mesma.
Por mais que o tempo passe, e as eternidades se percam, sempre que temos oportunidade de apreciar uma imagem, que teve a honra de ficar paralisada um segundo, ela resgata-nos o presente, nem sempre feliz, mas sempre fiel, ao contrário da nossa memória, que nos trai o tempo todo.
São os instantes congelados por olhos mágicos e lentes atentas. Percepções que vão além do mero fitar alheio. Visões que compõem o ideal de um tempo, de um mundo, de um quarto, de uma particularidade universal, ou de um simples momento aparentemente sem sentido.
Aproximam e afastam paixões; transformam segundos em séculos; capturam pensamentos e os fazem virar realidade palpável.
Uma arte sem explicação; como se arte precisasse e pudesse ser explicada. Apenas se observa, se analisa, se sente e, depois, revelam-se momentos indefiníveis. Muitas vezes os olhos vencem os dedos. O mesmo dedo que poderia dar um simples clique na câmera se torna paralisado.
Porque os olhos não os deixam fazer movimento algum, querem apenas guardar aquele momento na memória, são egoístas e desejam aquele momento só para eles, sem a presença das lentes. Daí que entra a experiência de quem pratica a arte de fotografar: conseguir comandar as mãos; fazer com que os olhos obedeçam é talvez um dos maiores desafios dessa profissão e só se chega lá no dia a dia.
A relação do fotógrafo com a fotografia e com a sua câmera é uma relação de amante, de adorador, de admirador, de artista; é algo íntimo, terno e por vezes conturbado.
As cores são importantes; todas elas. Às vezes duas delas bastam; e muito. Para os desavisados, a fórmula pode parecer simples: um olhar e um movimento das mãos. Para estes, talvez seja.
Eles certamente não veem que as flores dizem algo. Que as árvores contam segredos dos ventos. Que o céu por vezes cinza tenta esconder a vastidão do sol. Que aquela criança a dormir, com sua inocência sonha em acordar num mundo melhor.
Para estes que não veem nada disso, o dia é somente mais um dia; a noite é apenas uma noite. Sequer se dão conta de que a noite mostra luzes que nem ela mesma, de tão escura, é capaz de ver. Cria cenários sombrios e belos só para tentar nos enganar. E, do outro lado, aquela esfera tão grande e tão brilhante quanto, desnuda o que sua irmã quis camuflar, mas não conseguiu.
Tudo o que a terra nos presenteia é o que há de mais singelo. A complexidade, a simplicidade e a beleza criam o paradoxo, fazendo com que sejamos seres às vezes bons, às vezes maus, mas sempre humanos.
A vida, no entanto, esperta que é, resolveu proporcionar à terra olhares misteriosos e reveladores; olhares que dão a toda essa poesia visual uma imensidão que talvez nem mesmo o seu criador, num dia mais inspirado, pudesse prever. E se tivesse previsto, mesmo que por um instante, lhe daria, sem dúvida, o nome de fotografia.

Texto escrito a quatro mãos pela Nanda e este que vos escreve.

Meu silêncio

Odeio não entender o meu silêncio. Preciso dele, mas não o entendo. Ele me diz tanta coisa que não consigo assimilar. Ultimamente tem me contado que precisa mais de mim. Quer-me pleno. Diz ter anseio do mundo lá fora, acha que posso ser roubado dele. Meu silêncio é o meu amor. Às vezes ciumento, tem personalidade forte. Parece muito seguro e muito distante. Quando chego em casa, fica alvoroçado igual criança em parquinho. Pede-me para despir-me do que trago todos os dias. Gosta de ouvir sobre outros silêncios. Digo-lhe que alguns falam demais, não se contentam em apenas estar dentro dos outros, precisam tomar outros corpos, outros amantes, ter outros gritos. Meu silêncio me afirma. E eu me reafirmo nele. Em sua traição, me coloca no meu lugar, me faz vê-lo exatamente como sou, como me porto diante dos silêncios alheios. Meu silêncio, porém, não me completa; sou ele e ele é eu. Não há divisão nem troca. Meu silêncio não fala, prefere me tocar. Meu silêncio me bebe numa fonte que desconheço. Meu silêncio tem um jeito só dele de me fazer brotar um sorriso fácil, de enxergar meus poros se abrindo. Também é singular quando quer me deixar apreensivo. Às vezes se faz tão óbvio que me atormenta. Somos indivisíveis na nossa particularidade. Tenta me decifrar, e eu a ele. Meu silêncio é meu tesão, minha forma de amar o todo. Minhas palavras são meu silêncio mais alto.

Medo

Não quero viver o seu clichê. O seu medo é o mesmo que lhe atormentou tempos atrás. Sei que o medo fica, resta como um breve receio de amar de novo. Mas agora tudo é novo. Você já dormiu várias vezes. Não lhe peço pra esquecer o medo, mas para guardá-lo num cofre de lembranças. Esconda a chave, se preciso; use-a quando julgar necessário. O que se foi não se perdeu, apenas passou. Se tudo se confunde, pense menos, lembre mais. Servirá para reafirmar a sua vontade de entregar-se a este presente indefinido. Sinta. Fuja para dentro si. Esconda-se de si mesma. Chore. Desespere-se. Sorria. Cante. Invente uma realidade só sua. Idealize o indecifrável. Mas o próximo. Carregue o medo consigo. Defenda-se mesmo sem saber do quê. Mas não o deixe ser mais forte do que você. Nunca.

Mil razões para um amor sem razão

Que razão dizem se perder quando a gente perde a razão? A razão de quem, do quê? A única razão perdida é aquela que se vai com as palavras não encontradas. Minha razão está no meu corpo, naquilo que não expresso dele, que não conheço dele. Minha razão surge no pensamento que não consigo ter. A razão, acredito, é tudo que não consigo entender. Por isso não existe razão absoluta, verdadeira. A sua razão pode não ser a minha. Qual razão se busca ao ver um amor ir embora? Os amores não devem ter razão, senão a razão de simplesmente existirem. Amores bons, maus, insolentes. Porque o amor nunca é certo. Machuca, maltrata, fere, desvia, desorienta. Amor demais afugenta a paixão. Belo não é amar, belo é achar que ama. É não tentar entender o que se sente. A confusão se instala onde se procuram razões para o amor. Eu acho que amei todas as percepções que tive do amor, nunca ele. A gente ama o passado e o futuro do amor que criamos na cabeça, não o seu presente. Nem a outra pessoa é amada. No fundo, nunca amei, nem o amor nem ninguém. Porque ainda estou atrás das razões que me levam a pensar que posso amar alguém além de mim.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Livro velho de algo novo

Ganhei um livro velho. As coisas antigas guardam consigo uma história que pode um dia ser a de qualquer um. Trágica e interrompida. Ou mágica e leve.
Um livro novo é para aqueles que ainda nem sabem que poderão se apaixonar. Soa mais como um simbolismo, apenas um presente, um agrado, do que um afeto. Sequer precisei saber seu conteúdo. Ele já veio como uma vida aberta.
As folhas amareladas, como que roídas por traças, são como as brigas, as maledicências e os ruídos das relações. A capa dura e grossa me faz lembrar de uma canção de principio, daquelas que ficam guardadas pra sempre na memória.
Ao folhá-lo, exala já no inicio o mesmo cheiro do armário do quarto antigo da avó. Um quarto cujos móveis foram talhados por um artesão que amava o que fazia, mas que, agora, foi substituído por uma máquina sem pai nem mãe.
As bactérias de cada página têm quase o mesmo sentido que as marcas que deixamos nos corpos depois de uma noite de amor insano. Sugerem as lambidas e mordidas que lhe dou e que pintam o seu corpo, numa transparência sutil que só eu vejo, até que outra boca, mesmo que brevemente ou para sempre, tente apagá-las.
A estante onde guardarei o livro que me deste formará, junto com ele, o casal que idealizamos ao ver um retrato perdido numa loja de artigos raros e caros.
Não terei coragem de me desfazer da poeira que cobre as entranhas desenhadas com maestria na capa. Ela também pertence às pessoas que trouxeram de um passado distante ou próximo as lembranças, decepções ou alegrias de algo que talvez pensassem ser eterno ou que lhes bastasse durar um dia que fosse.
A dedicatória, num cantinho e em baixo no lado interno da capa, acompanha várias outras. Fundem-se como o sexo que fazemos, carregado de impressões e sensações de outros tantos que fizéramos antes de sermos isso que não precisa de nome.
Em poucas letras, escreveste: quero-lhe, como a este livro. Suas palavras, que parecem estar há séculos depositadas ali, bastaram para eu entender que a sua vontade – que também é a minha – era poder reescrever o que nos é recente, na tentativa não tão vã de que, no devaneio de um lindo sonho, estivéssemos ligados um ao outro desde que o livro fora escrito.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Para não esquecer o que já não era mais costume. Perdi o sono em algum lugar mais negro que a escuridão de um dia lindo e só. Como posso encontrar, na imensidão do silêncio noturno que me atormenta, um rosto que não mais se transforme em pó?
Minha gaveta confidenciou-me sua tristeza: achou que pudesse guardar retratos do pensamento.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Abraço

O meu abraço nem sempre é só um cruzar de braços. Posso querer lhe dar um pouco de mim. Talvez esteja tentando delinear seus traços. Ou quem sabe fugindo de alguém assim. Sou da turma do enlaço. Não nego, me apego, quero sempre mais. Mas nem tudo que vês é exatamente o que faço. Hoje posso lhe ter desejo, amanhã tanto faz. Quase nunca estou por aí. Necessito de outro espaço. Mas nunca esqueço o que senti. Na primeira vez de um abraço.

domingo, 22 de agosto de 2010

Onde a gente errou nesse caminho
Será que o caminho é que nos errou
Sinto falta daquele carinho
Mesmo aquele que me negou

sábado, 21 de agosto de 2010

Eu

Acordei mais velho ontem do que hoje. Agora escrevo para despistar a solidão. Acompanham-me um quarto, uma cama e alguns pertences. Inverno quente confunde os pensamentos. As sensações são menos verdadeiras, como flores de plástico mortas.
Ouço um barulho estranho lá fora; parecem gritos insanos de uma igreja louca qualquer. Não vou à janela; prefiro não ter a certeza de que alguém está sendo enganado. Acabo de desligar a televisão; quero poupar meu cérebro desse lixo não-reciclável.
Estou sem sono. A madrugada é minha anfetamina. Sou da noite, do escuro, do breu. Sempre que posso durmo quando os primeiros raios de sol começam a brotar no horizonte róseo. Nunca gostei de vampiros nem de morcegos.
Meu sangue é menos artificial e circula rápido pelas veias azuis; uma prova boba de que ainda vivo; ainda não sucumbi à terra, ao fogo e ao choro dos outros. A unicidade nunca foi escolha pra ninguém. É só o que se tem: eu, eu mesmo, sem Irene alguma.
Convive-se – e apenas isso – com outras singularidades; elas até tentam interagir; fingem muito bem, inclusive; um plural contraditório, aliás.
Queria ter dupla personalidade, mesmo taxado de louco. Poderia ser fake: para ser menos eu, menos meus pensamentos, menos tudo aquilo que acho que é meu. Conversaria comigo mesmo. Já tentei o espelho, enganou-me. É difícil ser amálgama.
A minha mistura com a sua não dá nós dois; e, se der, não seremos mais nós; teremos criado outro: meio eu, meio tu, meio metade. Estranho é não poder escolher ser quem sou. O resto é engodo. Afinal, o futuro me dirá como errar no passado.
Fico ansioso, porém, para saber como nos portaremos diante de nossos olhos: O que nos separa é o que sempre vai nos separar.
Mas não caímos no açodamento. Acho que quase resistimos à fugacidade. A fidelidade está apenas nas mentes que hesitam, que falseiam. Sou fiel ao que sinto. Tu também. Tenho ciúme, claro: ciúme do seu reflexo, do seu travesseiro, do seu perfume.
O que fazes com teu corpo é prazer seu. O meu é o teu corpo. Mais: importa mesmo é o que sentimos; faz-me pensar no prazer da troca, sem jamais ter de devolvê-la.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Máscara sem rosto

E a solidão mais uma vez me consome. Leva com ela tudo o que eu já não tinha. Pressente a imensidão de nada dentro de mim. É ridículo pensar que algo não tem fim. Se até o que existe acaba, imagine aquilo que é transparente, que não se enxerga, que não se toca, que não se sente.
Ainda guardo um suspiro. Nunca é o último. Esse guardarei para quando meu corpo começar a cheirar mal, quando realmente estiver solitário e com algum sentido. A morte talvez seja a melhor forma de estar sozinho e sem culpa. Ninguém perde, ninguém ganha, ninguém atira a última pedra.
Mas o problema é morrer estando vivo. Não é uma questão de opção. A gente caminha, fala, chora, grita, mas não existe mais. As pessoas até lhe veem, escutam-lhe, fingem que se importam. Mas você está ali, fazendo de conta que o ar que supostamente respira também supostamente ainda enche seus pulmões. O coração todavia bate. Ou talvez seja apenas mais um órgão que esteja a mexer-se dentro do seu corpo. Como todo o resto.
Odeio cultos demasiados à vida ou à morte. Simplesmente se vive ou se morre. De vários jeitos. Entenda como quiser. Seja uma ou outra, essa é a própria, é a da maioria, é a sua, é a minha. Sei que tento enganar o curso natural das coisas. Não é pra menos: ele insiste em me dizer o que fazer. Cansei de esconder a felicidade dentro do bolso. Confiei demais nela; ao me decepcionar, passei a ter de camuflá-la.
Para sairmos juntos, agora visto-lhe todos os dias uma roupa colorida; ela acha que voltou a ser o que era antes, eu também. Somos amigos agora; mentimos um para o outro.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Vinte e quatro horas

Nunca pensei ter de lhe dizer tchau. Chegou ao fim o que achei que fosse até amanhã. A história é uma cópia barata. Repete-se a cada instante que pensamos ser originais. Por que um dia se chama assim se há nele uma noite?
Foram as 24 horas mais longas que vivi desde ontem. As roupas sempre são vestidas mais devagar do que são tiradas. Teimam em não se ajustar aos corpos como eles se ajustaram à cama, ao chão, um ao outro. Mais uma vez penso em lhe dizer tchau. Teu beijo não mata mais a minha sede. Tornou-se realidade anunciada.
Por que não evitamos aquele olhar? Seria menos improvável dizer tchau. Por que você quis que eu fosse seu par? É tão simples ir embora agora? Não preciso saber quem você é. Teu corpo já me disse tudo. O telefone não vai tocar, não se preocupe.
Existe vida lá fora. Quero poder me encontrar novamente. Dois dias atrás eu ainda era algo que agora esqueci. O nosso formato é inesquecível até o próximo. Vamos falar do que nunca viveremos. Gosto de sentir o gosto do desgosto. Nunca tinha vivido nada parecido com você; nem nunca voltarei a viver.
Insisto: a vida segue lá fora. Não sei se é muito cedo pra lembrar de você, mas já estou com ciúmes de quem eu era ontem. O teu jeito meigo, meio minha, perdeu-se em algum lugar desse quarto. A água da banheira está fria.
Pena que a dose era única e rara. Era preferível a letargia à paixão. Podia ter sido apenas mais um dia; uma noite qualquer. Algo sem apreço, sem resquício. Mas o cheiro que deixaste no quarto é forte. E minha vontade ainda é tua. Sei que sexo é vida, mas o amor é o seu fim.
Podemos nos ter na pele, mas como uma tatuagem que sai com água. Vamos tomar banho juntos e ver nossas marcas fugirem pelo ralo. A sensação será a mesma para os dois. Melhor do que vê-la sair por aquela porta e nunca mais voltar.
Temo a certeza de que seremos somente lembrança boa. Melhor seria a decepção de uma noite ruim; vai embora como pólen. E as roupas voltariam ao corpo querendo ser lavadas mais do que ele próprio. Por que você teve de ser assim? Linda e sua; tão segura e tão sensível; adorável e difícil; visceral e carinhosa. Por que você partiu e não se repartiu?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Despercebidos

Eles são muitos. Estão em todos os lugares, nas pequenas, médias e grandes cidades. A correria do dia a dia, porém, faz com que muitas vezes se tornem invisíveis.


O município de Juiz de Fora, um dos maiores de Minas Gerais, em quase nada se difere de outros do mesmo porte. O centro, por exemplo, guarda personagens semelhantes aos de qualquer grande cidade do país. Com pelo menos 600 mil habitantes, é um caldeirão.

No calçadão, bastante parecido com a Rua da Praia, em Porto Alegre, milhares de pessoas caminham passos apressados como se estivessem a fugir de alguma coisa. Talvez estejam: das contas, da falta de dinheiro, da fome, do cansaço, da violência, da solidão. Só tentam: a realidade cotidiana as impede.

A diferença para o Rio Grande do Sul, no entanto, só existe mesmo no sotaque. Porque lá e cá, os papéis são os mesmos: há o pipoqueiro, o vendedor ambulante, os distribuidores de panfleto e a infinidade de pessoas que circulam e tocam suas vidas.

Moda de viola

Em meio ao corre-corre e a um calor de 30 graus em pleno inverno, um violeiro sentado na capa do violão entoa uma canção sertaneja em busca de alguns trocados. A voz é meio desafinada, é verdade, não o suficiente para deixar de atrair certa atenção.

Há quem passe, olhe e siga seu destino; outros param, ouvem a música por alguns segundos e também vão embora; existem pessoas, porém, que fazem questão de, além de apreciar a modinha, depositar no chapéu velho do cantor algo que, provavelmente, será sua refeição e, talvez, a de seus filhos também.

Vozes da rua

Do outro lado da calçada, a uns vinte metros do músico anônimo, uma menina grita as promoções da hora de uma loja de departamento. Loirinha, bonita, aparentando 20 anos no máximo, compete com outros anunciantes, que se aglomeram na tentativa de vender suas ofertas.

Meio rouca pelo esforço que tem de fazer com a voz, ela não descansa enquanto não convence alguém a entrar no estabelecimento. Afinal, esse é o seu papel. Mesmo que a compra não se concretize, conseguiu cumprir o trabalho para o qual fora contratada.

Rotina estressante de alguém que, sem dúvida, preferia estar numa universidade, mas, como grande parte dos brasileiros, tem de ajudar no sustento da família, deixando os estudos em último plano.

A melhor pipoca

Duas quadras depois, ainda no meio do turbilhão de gente, ouve-se uma voz com sotaque nordestino. É um senhor, com pinta de capixaba e devidamente uniformizado, que jura fazer a melhor pipoca de JF.

Ao menos quinze pessoas esperam pacientes numa fila para conferir, por módicos dois reais, a promessa do melhor produto da praça; perdão, da cidade. “Tem da doce e da salgada, venham experimentar”, avisa o baixinho.

Meninas de preto

Próximas ao pipoqueiro gente fina, duas meninas encostadas na entrada de um prédio conversam sobre as últimas novidades do rock intitulado de emo. Morenas, ostentam tênis de cano alto bem coloridos, cabelos com franja engomada e camisetas pretas com escritos de bandas norte-americanas.

Talvez não tenham a mínima ideia do que representa o conceito estético que tentam mostrar, mas uma coisa é certa: sabem na ponta da língua todos os sucessos das bandas Fresno, NX Zero e Restart, ícones no país do chamado rock com letras emotivas.

Vendo mas nunca terei

Basta circular mais um pouco e é possível ver em frente a um banco um senhor de cabelo bem branco a panfletar. Com semblante cujo desgaste da vida dura parece ter-lhe roubado anos, anuncia toda sorte de financiamentos, com débito em conta-corrente, para idosos e outras categorias.

Em bom tom, diz: “Temos financiamento para idosos, funcionários federais, estaduais e municipais. Descontos de até ‘tantos por cento’ e parcelamentos de até 60 meses. Aproveite”.
Um trabalho como outro qualquer, aparentemente. Desse ponto de vista, é sim.

Agora, será que ele tem noção de que tudo que está tentando vender é o que provavelmente nunca terá? Vivendo de bicos, ao que tudo indica, todavia não deve ter se aposentado; portanto, sem renda, sem acesso a crédito.

Além disso, como também não deve ter tido oportunidade de estudar, provavelmente nunca será um funcionário público federal, estadual ou municipal. Uma contradição necessária, digamos.
Você deve estar se perguntando qual é a novidade disso? Nenhuma, digo. Os exemplos não são novos, para quem conhece a rotina atribulada de uma cidade grande.

A questão, porém, é que essas pessoas, como milhares por aí afora, seja nos confins do Nordeste ou numa fazenda no interior do Rio Grande do Sul compõem o conjunto de uma população que, mesmo muitas vezes despercebida e na informalidade, é a cara do Brasil que se vira.

Com suor, muito trabalho e vontade de viver, esperam um dia ter algo melhor. E reforçam ainda mais aquele slogan que diz: “Sou brasileiro, não desisto nunca”.

Corpo

A face que foge do rosto


Entorna o denso vitral

Emoldura o reflexo fosco

A sobra do aspecto carnal



Súbita amostra contígua

Imagem sem foco aparente

Torpe retrato exíguo

Clama não ser mais latente

Olhares

Os olhares fitam-se. Viram um espelho. Cada qual enxerga-se profundamente pela íris. Nenhuma fotografia teria como reproduzir o terno momento. As máscaras caem naturalmente. Não há muralhas que se sobreponham à lividez do olhar sensato. Os rostos deixam de existir. A única curva é a dos olhos. Quatro deles. Todos outros membros tornam-se inferiores. O silêncio não incomoda. Palavras seriam erros; as faladas. Interação de desejos por meio de globos que brilham. Começam a ficar umedecidos. Pingam, agora. Choram. Piscam. Unem-se. Fecham-se.

Metade

Metade de mim é meu


A maçã não simboliza nada

Pequeno resto do todo é seu

Vida alheia e mal fadada



Choro mais que choroso

Sensação de leito de morte

Corpo sempre sestroso

Nunca se engana no corte



Abundância da carne pálida

Sórdido encontro vazio

Putrefata e fálica

Ninguém mais o viu



Despediu-se de antemão

Enrolado ao reles terninho

Restou-lhe apenas senão

Um metro quadrado sozinho

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Madrugada saudosa

Madrugada cálida. Janela aberta. Os únicos sons vêm de rodas que teimam em queimar o asfalto negro como a noite. As luzes são amarelas alaranjadas. O trem que cruza a cada meia hora corta o silêncio dos pássaros dorminhocos; os poucos que devem dormir por aqui. O sono aparentemente consome a vizinhança, que parece fazer companhia à parte mais velha da cidade. O novo está pra outros lados, bem longe dessas bandas. O céu é o mesmo de sempre. Algumas estrelas apenas piscam; tentam provar que estão vivas. Duas pessoas aparentando meia-idade caminham. Passos tétricos as levam devagar. Não se sabe se cansadas pela idade ou pela noite que as consumiu. Talvez queiram juntas ver o sol nascer daqui a pouco. É possível ouvir o barulho dos sapatos. Nem um cachorro os acompanha. Uma sincronia típica dos bailarinos. Vão ficando mais distantes. Não é mais possível vê-los. Pelo som, um portão enferrujado é aberto. Ouvem-se sussurros. Silencio. Sussurros. Uma porta se fecha. Os passos retornam. Mais fracos. O som dos pés tocando a calçada não tem mais ritmo. A dança deve ter chegado ao seu fim. A única pessoa que volta, um homem, parece cavalheiro. Deixa a amada em casa e agora deve ir pra casa sonhar. Paixão à antiga, daquelas que não se veem mais. O samba que cantarola também: “Saudosa maloca, maloca querida”.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Noite de concreto

Na madrugada. De ruas geladas. Ventos cortantes. Pessoas errantes. Tempos distantes. Você e eu. Naquele mar de concreto. Apenas seu amor e o meu. Procuramos um teto. Algo que nos deixe a sós. Guardamos as marcas nos bolsos. Tentamos não virar pó. Ah, como me perco no coração daquela menina. A tentativa vã de viver depois. Cruzar novamente aquela esquina. À luz da nossa soma. Dois.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Novo cd da Cartolas

http://tramavirtual.uol.com.br/musica/playlist/dynamic/disco/55394

Sem começo e sem fim

Não vou escrever sobre nós. Porque ainda não vivemos o que realmente queremos. Vou escrever sobre duas pessoas que têm vontade de estar juntas. Duas pessoas muito parecidas na essência, no pensamento, nos gostos. Duas pessoas ligadas por um afeto maior do que elas mesmas. Duas pessoas que não são irracionais, mas que se pudessem seriam movidas por emoções, sensações. Ambas estão longe fisicamente, mas lado a lado no coração. Elas não conhecem os defeitos uma da outra, mas os assumiriam porque sabem que isso as tornaria mais humanas, menos irreais. Essas duas pessoas não gostam só daquilo que é passível de fazer sentido; elas também viajam, e viajam juntas. Não são loucas, não totalmente; a não ser uma pela outra. Uma delas, a do lado de cá, sabe que mesmo moderno demais seu contato com a do lado de lá representa muito mais do que outros que já tivera em carne. A do lado de lá, porém, é tão sensível quando a outra, embora goste de ressaltar a sensibilidade da de cá. Esta está para aquela como o amor está para os que desejam amar. Embora a circunstância ainda não tenha lhes permitido viver o que querem, as duas não abrem mão de, pelos uma vez, confirmar tudo aquilo que dizem. Têm medo, no entanto, de que, expostas às suas vontades, elas sejam feitas uma para outra. O receio é normal para ambas. Afinal, vivem em situações antagônicas do ponto de vista territorial e, inclusive, a do lado de lá, vive uma história na qual se sente com os pés no chão, embora escorregue muitas vezes. A do lado de cá também tem uma situação quase parecida. Vai deixar pra trás a saudade. Mas o fará pensando que a do lado de lá um dia lhe dará – porque é o que esta quer – tudo que sempre quis: amor, afeto, carinho, cumplicidade, respeito, companheirismo, amizade e alguma dose de humor e indiferença. Esta sabe, no entanto, que aquela também o quer, também o deseja, no corpo e na mente. Falta-lhes, entretanto, a possibilidade de poder imprimir um no outro aquilo que tanto escrevem: na pele, na boca, no cheiro, no gosto, por dentro, por fora, por todos os cantos. Um dia, quem sabe, depois de conseguirem ficar juntos vão querer olhar um pouco pra trás e se confidenciar o que realmente sentiam quando pensavam que talvez nunca tivessem um ao outro.

domingo, 11 de julho de 2010

Dois

A nossa história começou assim. Tinha jeito de passageiro de estação, sempre a esperar pelo próximo trem. A nossa história ainda será contada. Mas ela já daria um livro. As poesias que ainda nem escrevi parecem que sempre foram feitas pra você. As páginas só permanecem pálidas porque todavia a cultivo na memória. A sua água vem da minha boca; a sua terra, das minhas palavras. Só irei escrevê-la quando achar que devo. Nosso tempo é de outro tempo. A cumplicidade de quem se parece. Dois seres que querem ser apenas dois. A união nos faria infelizes. Basta sermos dois. Precisamos ser um par. O encontro e o desencontro só acontecem com duas vidas. Meio não sobrevive; nem o meu nem o seu. Quero-a, sim. Mas o que estiver disposta a me dar. Não vou sugá-la toda de uma vez, não tem graça. Preciso de suas doses homeopáticas; pingá-la em mim. Não temos de contar nossos segredos mais íntimos; quem sabe os deixamos guardados; afinal, se são o que são que fiquem como são . O que é secreto lhe pertence. Assim como a mim. Só quero o que não tem medo nem receio de ser desvendado. O escracho, o escancarado, o infiel. Mas também o doce, o veneno, a verve. O riso, a ironia, o deboche. O lado negro, o olhar do avesso, um pouco de falsidade. O mau humor, o temperamento forte, as rugas. O sorriso meigo, o cheiro gostoso, o jeito seu. Todas as faces. Caras e bocas. Repito: nunca esqueça do conta-gotas. Dai-me em pingos. As nossas coisas belas ganham proporção quando se encontram. O inverso é o mesmo. A fúria também é semelhante. Continuemos dois. Uma dupla imperfeita a tentar ser mais imperfeita ainda. A confusão pra outros olhares. A emoção para estes olhares. Trate de nem sempre me fazer feliz. Olha o conta-gotas. É no sofrimento, na sua indiferença que a vejo por completa, dentro e fora, beleza e feiúra. Pode mentir pra mim, mas nunca me engane totalmente. Brinque comigo, jogue comigo, mas só me deixe ganhar quando isso a fizer feliz. Nunca por pena ou compaixão. Seu agradecimento só desejo por educação. Talvez esteja a lhe pedir demais. Pressinto que és assim, linda. Por isso a quero sempre mais sua do que minha. E mesmo que a nossa história seja curta, ela sempre será uma historia e sempre será nossa, de mais ninguém.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A copa da África do Sul

A copa da África do Sul é a copa do sonho de um povo sofrido, pobre, lutador.


A copa da África do Sul é a copa do Mandela e de todos aqueles guerreiros que, com armas ou sem, defenderam seus ideias de liberdade e justiça social.

A copa da África do Sul é a copa verde-amarela, a canarinha e a dos bafana-bafana.

A copa da África do Sul é a copa do simbolismo.

Mas a copa da África do Sul é, claro, a consagração do maior esporte de massas do mundo, o futebol.

A copa da África do Sul é a copa da volta por cima.

Mas a copa da África do Sul também é a oportunidade em que os olhos do mundo estarão voltados 24h por dia a quem sempre foi esquecido pelo resto do tempo: o povo negro.

Aos olhos fortes e vivos dos sul-africanos, a copa da África do Sul é a realização de algo quase ou tão importante quanto a luta contra o aparthaide.

No semblante de cada cidadão sul-africano, a copa da África do Sul representa alguns segundos a menos a pensar que seu pai, sua filha, seu irmão, deverão morrer ou já morreram por conta da AIDS.

No sorriso de cada sul-africano, a copa da África do Sul é a esperança de que, durante um mês, os conflitos religiosos, etnicos ou, sobretudo, os pela corrida das armas sejam postos de lado.

Na dança malemolente de cada sul-africano, a copa da África do Sul é a lembrança de que os povos, quando se unem pela mesma causa, sempre fazem imperar a paz.

No drible, semelhante ao nosso, dos sul-africanos, aquele sapeca, faceiro, ligeiro, a vontade de, ao menos desta vez, chegar à final da copa dentro de seu quintal.

Na curiosidade esperta das crianças sul-africanas, a copa da África do Sul é, como o é para as brasileiras, a perspectiva e o sonho de um futuro melhor fora da miséria, da pobreza absoluta, da marginalidade ou da guerra, cada qual com sua particularidade mas ligadas entre si.

Por último, mas tomara que nunca por fim, na consciência de cada sul-africano a copa da África do Sul guardará vivo em sua memória o sentimento de que, durante ao menos um mês, a população mais invisível do mundo teve no esporte mais popular a felicidade que deixará como legado a todos seus irmãos da terra. E sem distinção de cor.
Pra quem não tem twitter e, portanto, não pode ler meus pensamentos e frases, vou colocando alguns que julgar intessantes.

"Recôndita história em que meu apreço me dói, por ser infinitamente maior do que meu amor."
"Preciso tramar algo com os grãos de milho, quem sabe me ajudam a criar um rastro seu."
"A distância só diminui a tristeza quando vem acompanhada de sua presença."
"Saber se virar no inverno é lavar a louça no banho."
"As melhores estações do ano sempre são aquelas pelas quais não estamos passando."
"Aquele olhar, o voo fugaz dos cílios; a insinuação rápida e provocante. Um segundo e dá pra perceber pela irís a intenção do corpo resoluto."
"Tesão é quando a gente esquece de tirar a meia e não é cobrado por isso."
"Se um dia enfim eu puder vê-la que seja como as lembranças do que nunca vivemos."
"Prefiro a certeza eterna do teu corpo em minha mente do que a sua simples confirmação em minhas mãos."
"Meia-noite. Outra noite. O frio. Sem a lua. Tudo escuro. Solidão. Hoje sem rosto. Aquele corpo de nunca. Sem juízo. Sem nada. Outra vez."
"Dor é saber que o que mais se quer é a única coisa que não se poderá ter."
"Contento-me em saber que palavras sinceras - e apenas elas e em raros momentos - podem demonstrar o que uma vida inteira talvez não possa."
"Toda vez que vejo seu rosto gostaria de esquecer que sempre será apenas um rosto."
"Sinto que tudo acabou qdo não tenho coragem de buscar aquela camisa que deixei em sua casa e você, gentilmente, a devolve num saco de super."
"Um coração sem amor só poderia bater com a ajuda de aparelhos."
"Vivi demais com a sua ausência que quando a tive senti saudade."
"Um romântico digital não bloqueia o amor impossível. Ele se exclui pra não vê-la nunca mais."
"Talvez não quisesse viver o que não podemos. A possibilidade, quem sabe, pode ser mais interessante."
"Sempre é mais forte tudo aquilo que se sabe não passará de um sonho bom."

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Assim somos

Parece não haver sentido quando não a tenho por perto. Acabei de furtar um coração. Levaste o meu também. Não gosto dessa troca. Prefiro um pouco do teu aqui dentro de mim. Às vezes penso existir um mundo a nos separar. Uma distânica intransponível. Longe e perto. Confusão absoluta. Sentimento sem toque. Carinho sem afago. Amor estranho. Cheio de dúvidas e nenhuma certeza. Alías, talvez a certeza de que está por aí. Vaga como o pólem daquela flor que nunca lhe dei. A totalidade de uma presença abstrata. Sensação que esmaga, tritura, fere. Quer chorar mas não têm lágrimas. Quer sentir mas só o corpo se expressa. Minhas palavras são dóceis e molham a sua boca. Tornei-me um amante às avessas. Romântico ludibriado por um semblante alvissareiro. A gente ri, mas sente que chora. As defesas são mais fortes que os ataques. Pensamos ser resquicios de um passado não acontecido. Um presente forte. Uma ligação de sangue sem pacto. Um amor que quer mas não tem força. Receio o futuro; de não vivê-lo como agora. Poderia esperar. Afinal, os anos virão. Tomara que não me castigem, não me façam sobreviver em vão. Contentarei-me com as noticias da sua felicidade. Torcerei para que seja somente um escape. Não falso, mas não tão verdadeiro como nós. Isso chama-se encontrar. E independe do momento. Um acaso gostoso e triste. Sincero e intranquilo. Vivo mas em falência. Assim somos. Você e eu.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Inseguro em ti

Estou inseguro. Estou a me procurar todos os dias em frente ao espelho. Meu reflexo já não me satisfaz mais. Tenho uma cara cálida e branca. Uma face antagônica. Estou perdido. Não quero saber onde estou e nem o que sou. Tenho medo de achar alguém que talvez já tenha sido alguma vez. Coisas iguais.


O novo me atrai. Vou me cortar em pedaços. Quem sabe assim faça uma nova identidade. Quem sabe assim minha foto não reflita a mesma imagem do espelho de ontem. Vou comprar um espelho novo; vou pintá-lo de preto.

Preciso de um abajur a meia luz. Uma fotografia com tons felinianos. Meus cabelos castanhos em forma de contorno. Teu corpo reluzente a encontrar minha silhueta forte e rígida. Teu sexo úmido a esfregar-se em minha coxa.

Somos dois humanos do acaso. Momentos sem obrigação de se repetir. Amor em seu menor formato. Como as migalhas espalhadas do meu espelho velho. Pés descalços deixam rastros de sangue. As marcas vermelhas no chão, uma ao lado da outra, são o nosso pacto, nossa impressão digital. A prisão mesmo antes do crime.

Não podemos nos permitir isso. Somos livres, você e eu. Temos de ser iguais àquele passarinho no parapeito da janela a nos encarar. Ele vai e vem e nem nota nada. Não percebe o suor dos meus poros a se misturar com o seu. Ocasionalmente nos tornamos um, sem abrir mão da individualidade.

A dualidade de um lado só. Sem cara e coroa. O clichê biológico da espécie. A necessidade com consentimento. Às vezes, sem. Às vezes, tem. O drama. A cama. Os lençóis sujos com o liquido escuro. Sequer bebemos vinho. Deleitamo-nos até o despertar dos curiosos. A vaidade vista como sinal de arrogância. Os simples fitar da inveja ao lado. Calo-me. Dispo-te. Mais uma vez. As mãos agora percorrem de cima para baixo. Chegam ao teu ventre. Misturam-se ao viscoso liquido que jorra em dois tons. Não há nada alheio. É um jogo cínico. Duas mentes de um ato épico. A última vez que te sinto. A última tela que pinto.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Um pobre homem

Não tenho preferências por cor de pele ou cabelo de mulher. Gosto delas, e ponto. De todas; sem distinção. Mas aquela loirinha arrasou meu coração. Tinha o andar leve; pernas finas, mas lindas; o olhar penetrante; seios avantajados; voz de veludo; corpo escultural. Hipnotizava-me a cada fitada. Caía a seus pés.


A beleza nela era algo singular. Toda vez que a via saltavam-me os olhos; sentia um misto de desejo com ternura; de paixão com devoção (não devoção cristã e nem de subserviência). E ela sabia disso. Aproveitava-se, inclusive. Pedia-me tudo; eu fazia mais um pouco. Sem pestanejar. Pode parecer loucura. Devia ser mesmo. De minha parte não havia razão, só emoção; não havia amor próprio, só amor a ela, e em dobro.

É nestas horas que se vê o poder das mulheres, o fascínio que elas podem causar num pobre homem. Sentia-me um pobre homem, de vez em quando: pobre por amá-la tanto; pobre por achar que não suportaria viver sem ela. E realmente, naquele momento, não conseguia. Havia algo de magnético, de astronômico. Quem sabe ela fosse a lua?

Nunca tendei entender o que se passava. Talvez não quisesse. Bastava-me estar ao seu lado; às vezes acordar ao seu lado; às vezes pensar que em algum momento estaria ao seu lado. Nunca fizemos planos. Apenas vivemos os momentos: bons e ruins, é claro. Mas ela me deixou. Foi embora sem sequer dar adeus. Nenhuma explicação, nenhuma divagação, nenhum “eu te amei, mas tive que ir”.

Aquela loirinha ainda povoa minha mente. Penso o que teria sido de mim se ainda estivesse com ela. Imagino filhos loirinhos correndo num quintal florescido; uma casa grande com vista para o mar e nós dois, apaixonados, banhando-nos num oceano qualquer; vivendo de amor, como em alguma história com final feliz e sem dos desprazeres da vida real.

Pensando bem, agora sem ela, com o passar dos anos me tornaria apenas um pobre homem, e velho, muito velho, porque teria amado mais do que deveria. Seria pior do que o mestre Gabriel García Márquez: ficaria sem as grandes obras para a posteridade e sem as memória das putas que nunca tive, mesmo que elas fossem tristes.

Comida de vermes

O motel velho de beira de estrada dá o aspecto de um lugar onde o desenvolvimento é palavra corrente só em telejornais. Um letreiro informa os valores: R$ 20 o pernoite e R$ 8 por três horas. Final de tarde na cidadezinha de pouco mais de mil habitantes. O quarto de número 12 está fechado. O proprietário – um gordo, de bigode avantajado, calçando botas de cano longo, sem cadarço, e calças velhas - não registrou os últimos hóspedes. Perdeu o livro em que anotava o nome das pessoas.


Dentro do 12 há algo que transpira ares de putrefação. A camareira é mandada para verificar se os hóspedes querem que o quarto seja limpo. Sente o odor apenas ao caminhar pelo corredor. Chega a ficar tonta quando se aproxima da porta. Tenta abri-la com a chave. Não precisa. Está encostada. A luz está queimada. Tem dificuldade de enxergar. Tenta o abajur. Nada. Percebe a sola do sapato grudar-se ao chão a cada passo. Não agüenta ficar mais um segundo. Está com nojo. E medo. Sai para buscar uma lanterna.

A noite chega. Resolve levar o gordo consigo. Ele diz que não pode deixar a recepção. Ela insiste. Ele cede. Leva na boca uma coxa de galinha frita. Os pêlos do bigode brilham de tão engordurados. Devora o pedaço de ave com apenas duas dentadas. Joga o osso fora.

No caminho ela diz ter algo de estranho no 12. Ele afirma realmente não ter visto mais o casal que se hospedara havia horas. Deviam ter saído para visitar as cidades das redondezas e esqueceram de deixar a chave, acredita. Ela acha que não. Continua a suspeitar de que boa coisa não era. Chegam.

O forte cheiro faz embrulhar o estômago do gordo. Ela traz a lanterna em punho. Adentram. Os narizes tapados. Ela ilumina a cama de casal. Vazia. Ilumina o chão. Há vestígios do que parece ser sangue. Ele pega a lanterna. Dirigem-se ao banheiro. Também vazio. Naquele momento, pensa ele, a sensação é pior do que estar num chiqueiro. Algo apodrecera ali. Ele ilumina o criado-mudo. Uma faca com sangue. Pensam em ligar para a polícia. Primeiro preferem vasculhar a pequena cozinha.

Antes, porém, ouvem um barulho. Voltam. Duas pessoas abrem a porta: um homem e uma mulher. Ele coloca luz na cara de ambos. Gritos tomam conta do local. Assustam-se. Parecem ser os hóspedes. Não há certeza. Ele e a camareira estão cara a cara com os “quase” mortos ou “assassinos”. O rapaz e a mulher tentam explicar a situação. Acalmam-se. Ele apenas cortara-se ao tentar desencapar o fio do abajur na tentativa de consertá-lo. Correram para o pronto-socorro, que também é hospital. Tiveram de ficar horas. Mas ainda havia um mistério, pensa o gordo-bigodudo.

Pergunta-lhes sobre o cheiro. O casal também não sabe. Vão à cozinha novamente. É de dali que vem o aroma fétido. Moscas sobrevoam; fazem muito barulho. O gordo está com ânsia; acha que vai vomitar. Prende a respiração. Direciona a luz da lanterna à bancadinha próxima ao fogão de duas bocas. Veem diversos insetos alimentar-se de restos de um frango. Ele vomita. Vai demorar a comer de novo aves e assemelhados.

À frente do motel uma nova placa. Que diz, em letras maiores até que o preço da estadia: - Proibido deixar comida no quarto.

Conto escrito em junho de 2008.

Retrato de um forasteiro

Um forasteiro que visitasse Bagé há dez anos, no ano da graça de 1998, com certeza se faria algumas perguntas sobre a cidade: Onde está a cidadania das pessoas? Como as crianças estudam em escolas tão precárias? Como as pessoas vivem com esgoto a céu aberto e sem iluminação? Por que existe tanta gente passando fome? Por que a cidade está tão suja? Isso sem falar em outras dezenas de questionamentos. Provavelmente, este mesmo forasteiro, se quisesse aprofundar sua visão, procuraria a voz do povo. Indignado com o descaso, ele ouviria que a cidade havia sido esquecida há tempos por seus governantes.

Ele iria embora com a idéia de nunca mais voltar. Mas dez anos depois, no entanto, em 2008, o forasteiro, ainda com aquela imagem povoando sua mente, ao lembrar-se daquela cidade relegada à chaga, resolveria visitá-la novamente para ver se as coisas haviam mudado. Porque a recordação de um povo esquecido, jogado à própria sorte, ainda lhe inquietaria.

Ao chegar de novo ao que havia considerado na época uma pintura de Modigliani sobre o brutal retrato da Primeira Grande Guerra, ele se surpreenderia. Teria, à primeira vista, a impressão de não se tratar do mesmo local onde estivera uma década atrás.

No mesmo trajeto que fizera, ele depararia com outra realidade: a cidade ficara alegre, colorida, iluminada, tinha escolas novas, que davam aos alunos duas refeições por dia, havia postos de saúde novos, prédios históricos reformados, ruas asfaltadas, programas sociais, educacionais, culturais e de saúde. Tudo lhe faria saltar os olhos.

Espantado, não acreditaria: praças novas eram utilizadas por famílias inteiras; programas davam oportunidade a que idosos praticassem esportes; os agricultores do interior não precisavam mais abandonar o campo - eles haviam recebido casas e condições dignas para permanecer trabalhando onde tinham vocação -; milhares de jovens cursavam uma universidade pública e outros se qualificavam em cursos técnicos; mulheres também deixavam de ser apenas “do lar” e passavam a chefiar suas famílias e a obter renda; milhares de pessoas recebiam dignamente e de direito uma renda básica mensal; centenas de famílias conseguiam comprar casa própria; a população ganhava atendimentos de urgência e emergência em suas casas.

Cético sobre o que sua visão lhe proporcionaria, ele procuraria um cidadão qualquer andando pela cidade, a quem perguntaria: O que houve aqui? Quem, por milagre, havia conseguido fazer isso? O cidadão lhe responderia, sem tergiversar: - Foi o PT. E o senhor não viu nada, ainda têm mais - concluiria o cidadão.

Texto escrito e publicado no jornal do Partido dos Trabalhadores em março de 2008.

O cinema, a pirataria e suas nuances

Como sou fã de filmes (de preferência não-hollywoodianos) estava eu a baixar da internet - pirata, é claro – o comentado Meu nome não é Johnny. Esperei a tarde toda na ânsia de ter o que fazer de noite, em Bagé, “num belo dia de janeiro e de calor”.


Umas seis horas depois, qual foi minha surpresa: em vez do filme, um show do Calypso ao vivo, sei lá onde no país. Que m. , disse, em voz alta. Mas aprendi uma coisa com este episódio. Não, não pense que foi que pirataria é crime, isso eu já sabia. Percebi, sim, que devo ver parte do filme antes de baixá-lo todo. Além do que não me considero um pirata. Não vendo os filmes que baixo; no máximo, os empresto aos amigos. Ou seja, não ganho dinheiro com isso. Pratico o amor à sétima arte. Digamos que eu promova a minha boa cultura e de alguns de meus semelhantes.

Tem gente que se diz amante do cinema – ouço isso aos montes – sem nunca ter se deleitado com Bergman, Antonioni, Pasolini, Bertolucci, Godard, Oliver Stone, Tarantino, Coppola, Sergei Eisenstein, Almodóvar e etc. Mas tudo bem, não os recrimino. Reconheço que a força da mídia hollywoodiana bate qualquer outra do mundo no que se refere à divulgação de suas produções.

As pessoas, no final das contas, se acostumaram a ver tudo mastigadinho, com roteiros estritamente lineares, isto é, o corriqueiro início, meio e fim, tal qual o conhecemos. Também não raro escuto um “não gostei daquele filme, não entendi nada”.

Claro, quando a história é boa, a filmagem, edição e outras coisas são pouco convencionais – casos destes diretores que citei e tantos outros – a obra, para eles, torna-se chata. Pessoal, filme bom é filme que se vê várias vezes, filme em que é preciso usar a cuca, nem que pra isso seja necessário ouvir as explicações do diretor ou mesmo ler algo sobre a história. Fugi um pouco da pirataria pra fazer esse adendo. Volto a ela, portanto.

Eu recorro à pirataria pelo simples fato de não conseguir o que quero aqui na cidade, a não ser por estes meios. Vá numa locadora e peça, por exemplo, 8 e meio, um dos maiores clássicos do Fellini. Cem por cento a resposta será: “Não tem”. Isso se tiver sorte, porque provavelmente o atendente nem saiba quem é Federico Fellini. Mais do que apenas uma crítica a quem trabalha no ramo, trata-se de uma cultura mundial e, especialmente, local.

Como disse o grande Carlos Gerbase, cineasta gaúcho, quando da morte ano passado de dois mestres: “O cinema é entretenimento, mas com Bergman e Antonioni é arte”. E tenho dito!

Texto escrito em janeiro de 2008.

Loucuras de um gênio

Terminei de ler, pela terceira vez, a biografia sobre o Tim Maia. Tal como Noites Tropicais, o livro é assinado magistralmente por Nelson Motta. Eu sempre fui fã do Tim Maia. Agora, então, virei de carteirinha.


Com todas as suas excentricidades, ele é exemplo claro de como os gênios morrem cedo: tinha 55 anos quando morreu. Mais do que Janis Joplin, John Lennon, Jimi Hendrix e Jim Morrison, Charlie Parker. Quem não lembra do clássico: “Mais retorno, mais eco, mais grave, mas side, mais agudo. Mais tudo”. Uma de suas marcas registradas.

A definição da vida de Tim dada por Motta deixa claro: que ficcionista seria capaz de criar um personagem como Tim Maia? E quem acreditaria? Isso é verdade, inegavelmente. Tim foi, nas palavras do escritor, o ser humano mais livre do mundo. Obedecia apenas a sua mãe, dona Maria Imaculada, a quem pedia benção todas as vezes em que tinha de viajar de avião, acompanhado, é obvio, de algumas garrafinhas de uísque 12 anos, seu preferido.

Conhecido por não aparecer em seus shows, ele brincava: “Tim Maia, o artista que mais comparece aos seus shows”, dizia, seguido de uma gargalhada inconfundível.

Talvez poucos saibam como surgiu o rótulo de síndico, popularizado na canção de Jorge Benjor, seu amigo de infância. Tim estava no auge da carreira e comprou um apartamento num bairro nobre do Rio de Janeiro.

Muito pesado, no alto de seus cento e tantos quilos, ele tinha medo de chegar até a sacada para ver o mar. Resolveu, então, trocá-la de lugar. Nesse mesmo local, Tim recém havia se mudado e percebeu que três caras rondavam o prédio. Chamou um de seus amigos, que lhe trouxe uma arma, e Tim começou a dar tiros pra todos os lugares. Os supostos meliantes foram embora.

Noutra oportunidade, ainda temendo por sua segurança e armado, viu pela sacada dois rapazes subindo numa escada. Não teve dúvidas: crivou-os de bala. Mais tarde descobriu que se tratava de funcionários da Telerj que faziam reparos na rede de telefonia. Final das contas: tiraram-lhe a arma, antes que ele e outras pessoas se ferissem. Daí o porquê do trecho da música: “Tira essa escada daí, eu vou chamar o síndico, Tim Maia”.

Outra história interessante – todas elas são, o livro todo é – aconteceu no verão de 1987. Com o Rio de Janeiro vivendo umas das maiores secas de maconha, Tim recebe uma ótima notícia: o cargueiro Solana Star, vindo da Tailândia, tinha encalhado em Angra dos Reis e liberado no mar 14 toneladas de maconha prensada, em latas de dois quilos.

As primeiras, logo na manhã, foram recolhidas por surfistas e pescadores do Arpoador. A notícia se espalhou rapidamente. A maconha que tinha praça era ruim e cara, e a da lata era a melhor que tinha já fumara. E muito mais barata. Rapidamente, Tim enviou um secretário com a missão de “comprar todas que tivesse”. Teve de se contentar com apenas seis quilos do produto. E comprou um binóculo.

Na varanda do apartamento, passava um bom tempo observando o mar da Barra e, caso visse alguma coisa brilhando, começava a gritar e seu ajudante, Zé Carlos, um dos muitos que teve, era enviado imediatamente à praia. Apesar da vigilância, nenhuma lata foi encontrada.

Estes são apenas alguns exemplos de sua vida regada a muito excesso, do qual Tim foi o rei, com todos os entendimentos que essa palavra possa suscitar: de talento, de peso, de genialidade, de drogas, de sexo, de bondade, de generosidade, de explosão e outras tantas mais.

No dia 15 de março deste ano (2008, quando o texto foi escrito), exatamente às 13h03, fará dez anos que o gordinho mais simpático da Tijuca se foi. Mas suas canções vibrantes, com sua voz de veludo, que estremecia onde entrava, continuarão a animar festas, bailes e casamentos de muitas gerações Brasil afora. E, como diz Caetano Veloso, “quero que tudo saia, como som de Tim Maia”.

Texto escrito e publicado no Jornal Minuano, de Bagé, em janeiro de 2008.

Foi a vela, não eu!

Você, caro leitor, já foi acusado injustamente de ter posto fogo em algum lugar com uma vela de aniversário? Pois é. Eu já fui. E lembro bem disso. Devia ter uns 10 anos. Morava no Scyla Médici, conjunto habitacional de oito prédios e centenas de apartamentos quase ao lado no estádio do Guarany Futebol Clube.

Era maio. Inicio da tarde do dia 8 ou 9. Meu irmão, um dia ou dois antes, fizera dois anos de idade. Com direito a festinha no salão do complexo e tudo mais. Aquela época era comum reunir vizinhos e familiares e se empanturrar com doces, salgados, bolo e dançar muita lambada. Isso mesmo, lambada: cito Beto Barbosa, Kaoma e outros artistas com nomes estranhos que, não se sabe como, trouxeram esse ritmo dos confins da Amazônia. Mas voltemos à vela. Ah, a maldita vela!

Em casa, brincava eu com a tal vela, ainda meio suja de bolo, que sobrara do niver do mano. Ascendia, assoprava e apagava a vela; ascendia, assoprava e apagava a vela. Coisa de criança. Mas não era um santo, definitivamente. Mas tinha dez anos, convenhamos. Como todo piá, logo, logo cansei de brincar com a vela. Tinha outras mil coisas pra fazer naquele dia.

Pela ultima vez, ascendi, assoprei e apaguei a vela. Saí do quarto. Antes, porém, bati na vela sem querer. Sem notar, ela caiu acesa atrás de uma cômoda que dividia minha cama do berço do meu irmão pequeno – e único - e pegou fogo na cortina, espalhando-se em seguida por todo o quarto. Meu primo quem descobriu as labaredas. Fora me procurar em casa. Quando perguntou a minha mãe onde eu estava, disse ela: “Acho que está no quarto”. Ele abriu a porta e deparou com o fogaréu. Calma. Meu irmão não estava no berço. Até hoje minha mãe insiste em dizer que sim. Mas ele não estava, juro que não.

Sem saber de nada, fui fazer o que tinha de fazer. Era um adolescente atarefado: jogava futebol, brincava de pega-pega, batia em alguns garotos, paquerava as meninas. Mais tarde, ainda perto de casa, ouvi gritos. Vizinhos corriam em direção ao prédio em que morava. “Fogo, fogo”, gritavam. Fogo, pensei eu!. De onde? Tenho de ir lá ver. Ao chegar próximo do prédio, constatei que o fogo vinha de minha janela. “Como diabos poderia estar pegando fogo no quarto e por quê?.

Ocorreu-me, naquele exato momento, lembrar da vela, com a qual brincara poucas horas antes. Só podia ser por causa dela o fogo. Lógico. Entrei em pânico. Temia que, como de costume, a responsabilidade caísse sobre os meus ombros. Mais especificamente sobre ombros, pernas, braços: afinal a mãe sempre me batia quando eu fazia algo de errado. E quando não, também. A fama de mal feitor me perseguia. Sem méritos, pelo que lembro, mas perseguia.

Prevendo o que me esperava, corri para o primeiro edifício do condomínio, que ficava bem longe do meu. Subi quatro lances de escada e escondi-me no último andar. Subi a pé; sequer havia elevador. Fiquei lá por mais de uma hora. Sorte que não subiu ninguém naquele andar enquanto eu estava. Pela minha cabeça, passavam-se várias coisas: Como será que vou apanhar? Pelo grau do acontecido, minha mãe vai de me bater de chinelo, tamanco ou com um pedaço de pau? Restava esperar. Deixei calmar a poeira e desci para ver a repercussão. Estava assustado. Mais do que perder tudo do quarto, o que parecia ser óbvio (havia bombeiros, gente atirando água de balde e o escambal), amedrontrava-me a represália. Na verdade, a adiava; ela era inevitável àquela altura.

Quando descia em direção ao meu prédio, já desolado, avistei de longe pessoas a apontar em minha direção: “Lá está ele, lá esta ele”, diziam. É o meu fim, pensei... Tudo resolvido, fogo apagado, susto passado, cheguei em casa. A desculpa na ponta da língua, disse, sem tergiversar: “Não foi eu, mãe, foi a vela”. Ela me abraçou. E chorou...

Texto publicado no Jornal Minuano, de Bagé, em janeiro de 2008.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Onde estão os campinhos de futebol?

Nas andanças pela cidade tenho percebido, há tempos, algo que tem me feito pensar e ao mesmo tempo lembrar da infância: onde estão os campinhos de futebol, se a tradição e a paixão pelo futebol, no Brasil, continuam as mesmas? Pois é. Não sei. Talvez eles ainda existam, talvez eu que os esteja notando menos. Talvez.

O local onde morei por muitos anos, por exemplo. Na esquina havia um campinho. Nele, a gurizada e eu jogávamos todas as tardes. Faz um tempo transformaram-no num estacionamento. Mas ainda existem crianças ali. Ah, esqueci: elas devem estar jogando nos campos artificiais, os chamados soccer ou futebol sociate, enfim, têm vários nomes. Sei é que não deixaram de jogar futebol. Quem sabe trocaram pelo computador ou vídeo-game.

À exceção da várzea, que ainda cultua o futebol nos bairros, as peladas em campinho de areia ou grama estão quase em extinção. Alguns falam que é a violência; outros atribuem à internet. Pode até ser. Prefiro acreditar que a criançada continua a jogar, só não vejo onde. Até porque as de menor poder aquisitivo, digamos, sequer têm acesso a essas novas formas de praticar o esporte. Naquela época não havia divisão de classes quando se tratava de futebol.

Quando estudava pela manhã eu jogava à tarde. O inverso se deu quando passei a estudar de manhã. Esperava minha mãe ir trabalhar e correndinho juntava a turma e bora pro campinho. Lembro que ao término dos jogos saía imundo: suado e sujo de terra. Mas contente. Em algumas situações minha avó tinha de me chamar. Ela gritava, com sotaque espanhol, embora falasse na verdade portunhol: “Daniêl, daniêl!”. Por mim ficava o dia todo. Todos os dias. Ao chegar em casa almoçava, tomava banho e ia à escola.

Na volta, adivinhe: campinho, claro. Tirava o uniforme – quase como uma alforria -, colocava um calção, a camiseta do grêmio (na época ela era de uma espécie de lã) e, para arrebatar, o tradicional quichute. Eu sei, não era tão rápido assim: levava um tempinho fazendo mil e quinhentas voltas no tornozelo com o cadarço do quichute para deixá-lo bem apertado. Em seguida, pegava a bola e rapidamente dirigia-me ao campinho do condomínio.

Um campinho bem simples, é verdade: ondulado, cheio de buracos e com as traves feitas de cana, ou bambu, se preferirem. Havia dezenas na cidade melhores do que aquele. Mas não precisávamos de muita pompa. A alegria estava em jogar. Pouco importava o local. O resto era o resto.

Dependendo da época e do campeonato eu era o Sócrates, o Romário, o Renato Gaúcho. Em copas do mundo volvia a ser o Romário, Toninho Cerezo ou o Branco. Às vezes quando dava uma de goleiro incorporava o Pumpido, da Argentina. Variava. Nunca o Carlos, pra quem lembra dele. Que desastre!

O nosso mundo do futebol era esse. Havia também os álbuns. Completei todos do Campeonato Brasileiro e o do Ollé, este continha a seleção brasileira de 1990, se não me falha a memória. Comprava toda a mesada de pacotinhos de figurinha. O Giovane, do Vasco, estampado numa figura meio amarelada com defeito de fabricação era o mais fácil de se tirar: estava em praticamente todos os pacotinhos. Quando não as trocávamos com os colegas, brincávamos de jogar bafo – acho que não preciso comentar o que é. Sempre me dei bem nessa modalidade, diga-se.

Dia desses, num bairro que se pode chamar de periferia, vi dois gurizinhos batendo uma bolinha. Parado, de dentro do carro comecei a observá-los. Fiquei uns cinco minutos fitando-os. Uma vez para cada um ficar no gol. Brigavam. Queriam impor suas vontades de quem seria o melhor, quem seria o Ronaldinho Gaúcho, o Kaká...Dez anos no máximo tinha cada um deles.

Em vez do campinho, uma quadra de cimento. A bola parecia ser das boas, diferente das que usávamos em outros tempos. Em vez do quichute, quatro chileninhos protegiam os pés. Fácil de se machucar. O futebol, o mesmo de sempre. Os personagens, também. Mas as roupas estavam aparentemente limpas: sem vestígios de barro ou pó, provavelmente ainda com cheiro de amaciante. E o campinho: mais uma vez não estava lá...

Crônica publicada no Jornal Minuano em 2007. Mas ainda vale. Sobretudo em tempos de copa.
Em tempos de copa do mundo e de escalação um pouco controversa da seleção, não poderia deixar de homenagear o mestre da crônica esportiva Armando Nogueira. Boa leitura.

A Copa dos Meus Sonhos - Armando Nogueira




A Copa dos meus sonhos tem Garrincha, tem Mathaus, tem Gullit e Platini;

A Copa dos meus sonhos tem a graça do passe de conta, a picardia do drible de ponta e só gol de gente que apronta;

A Copa dos meus sonhos tem chutes de todas as cores: branco, vermelho e laranja, mar azul de Maradona, verdes pés de Nílton Santos;

A Copa dos meus sonhos tem cheiro de grama fresca nos passos de artilheiro, lua cheia nas mãos de Yashin;

Na Copa dos meus sonhos a bola encobre o goleiro, arco-íris deitando sem pressa nas malhas do coração;

A Copa dos meus sonhos é a dança serpentina de Milla, veludo feitiço nos dribles de Mané;

A Copa dos meus sonhos tem bola que chora e transpira, bola de primeira e dividida. Bola sonsa de Didi, bola santa de Pelé;

A Copa dos meus sonhos só não tem bola que sangra;

A Copa dos meus sonhos tem gazeta no colégio, tem hino e papel picado e delírios de bandeiras no templo da fantasia;

A Copa dos meus sonhos tem súplica e desespero, esperança e blasfêmia pelos quatro cantos do mundo;

A Copa dos meus sonhos são todas as copas que vi e todas que ainda verei no indizível caminho da bola, que não tem começo e não haverá de ter fim.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A nossa "Londres"

Toda as vezes que vou a Pelotas – e têm sido muitas nos últimos dois anos – percebo um ar meio europeu a pairar pela cidade. Nunca fui à Europa, que fique claro.
Quando falo da Europa, refiro-me a Londres, mais especificamente. Todos sabem que se trata da cidade mais úmida do mundo, ou uma das. Pois Pelotas, ao que sei, é tida como a segunda mais. As noites por aqui são meio londrinas. Esclareço: meu conhecimento de Londres vem dos filmes, livros, televisão, etc.
A diferença daqui pra lá é que até então aqui não apareceram Jacks estripadores ou lobisomens americanos. Menos mal. Até gosto de lobisomens, mas de retalhadores de gente, não. Se bem que ambos têm um quê de magia, mesmo que retratados para o mal. Ah, também não tenho notícia de Sherlok Holmes por essas bandas.
Voltemos à londrinidade de Pelotas. É uma sensação meio estranha andar pela cidade e ver aquela névoa rondando os espaços. Bonito, mas sombrio. As coisas parecem se esconder ou camuflar-se. Os rostos, todos, ganham contornos de uma áurea oculta. As pessoas andam como se estivessem sendo perseguidas.
Deve ser o lado negro do pensamento a imaginar os lobisomens ou estripadores. Ou, numa versão mais moderna, os nossos estupradores, assaltantes ou viciados em crack, querendo fazer as vezes de monstros de outrora. Sei é que as pessoas fogem. Andam acanhadas.
Os carros passam com seus vidros embaçados. Dão a impressão de terem nuvens por dentro. Cruzam as ruas desertas. As luzes nos postes ficam envoltas em um ar estático. É uma das poucas vezes em que se pode ver o ar. Espesso, quase tétrico.
A diferença noturna entre as duas cidades, porém, só guarda semelhança no clima. O resto é bem distinto. Pelotas é uma das cidades mais tradicionais do Rio Grande do Sul no que se refere à história do Estado, às charqueadas, as revoluções. Londres dispensa comentários: é uma das tradicionais do mundo, do novo e do velho.
Aqui, no entanto, criou-se nos últimos tempos a cultura de se ouvir pagode. Seja nos pubs, nas boates e etc. Lá, assim espero, ainda ouvem-se Beatles e Rolling Stones. A discrepância é absurda. A névoa que cai por aqui bem que poderia vir acompanhada de alguns costumes londrinos, musicalmente falando. Bem que ela poderia ser importada, digamos.
Sei que isso tudo é influência dos meios de comunicação, do mainstream, dos jabás, da cultura pop, etc e tal. Pouca gente, acredito, ainda escuta seus conterrâneos Kleiton e Kledir, Vitor Ramil, por exemplo. Não reverenciam mais a Pelotas de ontem, sem ser nostálgico e sectário. Não sabem mais a história do café Aquários do Satolep de Ramil ou dos Simões Lopes. Pelotas tornou-se a mesma coisa, mais do mesmo. Até um bar da cidade, que até por onde sei não toca músicas de gosto duvidoso, tem nome de Nova York.
A única relação com Londres, no final das contas, é que aqui ainda tem clima londrino e o português – como lá, o inglês - é falado com sotaque de antigamente.

Lembranças não vividas

Tenho um gosto amargo na boca
Da vida que levo, da vida que espero
Tenho saudade daquela moça
A conheci dançando bolero

Procurei por ela uma vida inteira
Amei amores diversos
Amei à minha maneira
Mas só a descrevo em versos

Palavras de um nunca ter tido
Coisas que não passam ao léu
Queria ser mais que um amigo
Ter colocado-lhe o véu

Lembro de tempos que não vivi
Como é possível recordar assim
Desde a única vez que a vi
Deixou rastros eternos em mim

Ainda lembro de ti

A quantas anda teu coração
Consegiu viver sem mim
Ou morreste em vão
Sei que ainda estás a fim
Carrega contigo o pavor do perdão

Deixei de ter amar algum tempo atrás
Morreram os sonhos e o sabor do prazer
Ficaste no pensamento que só a memória traz
Sozinho no meu canto ainda consigo viver

Esses tempos me parei a pensar em nós
Não tive lembranças nem disabores
Apenas escutei tua voz
Na companhia de outros amores

A vida é assim
Esconde surpresas imponderáveis
A tortura nos conduz ao outro, enfim
Vivemos momentos irreparáveis

Os tempos são de mudança
Caminhos irregulares não se cruzam
A estrada encontra no ar uma dança
Dores de amor só me abusam

Não tenho mais papel

Ainda escrevo. Apenas troquei a folha em branco por uma luz também branca com formato semelhante ao do papel, só que ligada na tomada. Não uso mais borracha; não uso mais lápis ou caneta. Aperto um botão e pimba: está tudo ligado, como num passe de mágica.
Continuo a ir em livrarias só pra comprar folhas de papel. Nunca mais nenhuma delas teve o meu traço. Elas são riscadas por uma tinta preta ou colorida que sai de outra maquininha também acionada por um outro botãozinho. Mas será que eu ainda escrevo de fato? Ou será que apenas coloco ideias rápidas – cada vez mais – dentro de um retângulo ligado pelo botãozinho? Meus dedos estão bem exercitados. Pelo menos isso.
Pensando bem acho que agora simplesmente digito pensamentos. Transcrevo aquilo que minha mente consegue distinguir dentre os vários acontecimentos de um dia repleto de informações aleatórias. Não sei como, somente faço. Uma coisa é certa: não tenho mais pensamentos pequenos, simples, cotidianos, mas importantes.
A vida permanece local, óbvio, mas totalmente globalizada, diriam alguns próceres do novo liberalismo. Nunca mais reparei nas crianças brincando na praçinha. Esqueçi como é olhar um menino jogar futebol num campinho sem grama. Até nos momentos em que fico só, sou bombardeado por apelos visuais-estéticos.
A televisão me diz o que preciso ter e o que não posso ter. O que preciso ter, para eles, é o que a maioria das pessoas nunca poderá ter. Roubaram-me o tempo interior; meus devaneios íntimos. Meus anseios não são mais meus; devem estar vagando por algum inconsciente do espaço cibernético. Muitas vezes custo a me reconhecer no espelho; não o do Narciso; o puro e simples reflexo pelo reflexo. Ou melhor: a me conhecer. Algum dia devo ter sabido quem de fato eu era ou fui.
É dificil fugir do emaranhado de conceitos que relativizam ou deixam em dúvida a nossa existência. Mesmo a leitura, o conhecimento, nos deixam cheio de perguntas, para as quais não há respostas. Menos mal: prefiro estar cheio delas a achar que tenho todas. O lugar onde escrevo continua a ser branco; como o branco que nos dá antes de uma provação a esperar ideias que tenham um mínimo de nexo em meio à sociedade em que vivemos. Uma divagação sem fim sobre tudo o que se espera um dia faça sentido.
Mas porque diabos as coisas precisam ter sentido se o mundo em que se vive não faz o menor sentido? Você precisa casar, ter filhos, essas coisas, alguém me disse um dia. Mas por que preciso? Porque socialmente e biologicamente os humanos são feitos pra isso? Por que eu preciso ser feliz? Quem acredita em felicidade a não ser a propaganda?
Eu uso aquele sabão em pó, mas não vejo tudo mais branco; a não ser o espaço que fica na minha frente cada vez que tento dizer algo a mim, a todos ou a simplesmente ninguém; assim como as folhas que guardo na gaveta ao lado: limpas, brancas, impecáveis.
São novas como um dia a Amazônia foi antes do desmatamento. São brilhantes como o céu um dia foi antes da poluição. São parceiras e ficam juntas como um dia foi esse mundo onde você está. Um dia, é provável, tudo desaparecerá: eu, você, o mundo. E as folhas de papel nunca mais serão brancas como ainda são neste momento. Elas, não!

Nossa rua

A nossa rua não tem mais aquele cheiro
Estamos sozinhos nesse confim
Aquilo tudo não volta de novo
As esquinas perderam seus rostos

É tudo para um lado só
As placas estão ao contrário
A direção perdeu seu lugar
Não vejo amigos, não vejo otários

Que rua sombria é essa
Recordei de quando menino
O tempo passou de repente
Não tem presente, não tem futuro

O que nos resta é sentar
Em algum banco que ainda exista
Nesse mundo ávido e lívido
Da solidão de um artista

Quem sabe melhora em seguida
Não acredito no Apocalipse
Temos que ser otimistas
Afinal, tentamos ser poetas

Fantasia e realidade juntas
Não desgrudam sequer um minuto
Parecem até prostitutas siamesas
Dançando sobre as mesas

Dos botecos de quinta
Com frequencia diária
Toda semana é mais um dia
Que nossa rua teria

Sai dessa, meu bem

Descomplique as coisas, meu bem
Seja você, você mesmo
E mais ninguém

Atira tudo pro alto
Se essa for sua vontade
Desça, saia do salto
Pra renasçer não tem idade

Não adianta ficar calada
Engolir a saliva pode engasgar
Muito menos ficar deitada
Melhor é cuspir tudo, vomitar

Vai por mim, meu bem
Para de segurar esse grito
Sai desse vai e vem
Me acompanha no agito

A timidez é questão de tempo
Já estou acostumado a te ver
Reprimir demais o pensamento
Algo que só faz sofrer

Tira essa gravata sem nó
Pinta meu sonho do avesso
Entra na minha cabeça sem dó
Assim nunca mais te esqueço

O terreno está pronto
Basta que você me sinta
É só bater o ponto
Mas, por favor, não minta


Letrinha de música. Pra descontraír.

Que juventude é essa?

Onde estão os jovens de agora
Ficaram nos anos 90
Impregnados de lixo de fora
Não falam, não pensam

Devem estar escondidos
Por detrás de um documento
Contrariando Caetano, perdidos
Ou em arranha-céus de cimento

Que juventude é essa
Nascida no auge do grunge
Ouvia Nirvana sem pressa
Agora consome enlatados Bunge

Estão fadados ao fracasso
Profissional, talvez não
Da criatividade do traço
Ao rancor de viver em vão

Não ganham mais as ruas
Preferem o egoismo cibernético
Têm o aval das peruas
Que bebem junto energético

De politica, não entendem
De amores, correm
A consciência repreendem
Ao final, todos morrem

Semelhança com Que país é esse? não é mera coincidência. Seria uma versão mais atualizada, digamos.

O sol mostra o dia

As portas do castelo se abrem
Morcegos viram vampiros
Vampiros viram carneiros
E os homens se tornam guerreiros

A ilusão cresce na alma
Como a água bate na pedra
É um susto absurdo
Para levar sua calma

Espíritos sem luz vagam
Pela noite cálida e límpida
Transformam emoções em farpas
Deixando a escudirão mais tímida

Um raio de sol mostra o dia
É hora de ir embora
Deixar sensações etéreas
Pairando na relva lá fora

Nunca pedi perdão

Parece que o céu despencou sobre a minha cabeça
Fiquei cego de tanto de enxergar
As mazelas que tentam esconder
No olhar sincero do porteiro

As ruínas não estão mais empilhadas
Sinto cheiro de carne
As bombas ficaram no passado
Os corpos, espalhados, refletem o que sentes

O enxofre que polui é o mesmo que sorvo no café da manhã
Levanto mais leve, mais forte
É apenas mais um despertar
Talvez o cheiro seja meu, talvez o cheiro seja nosso

As árvores começaram a cair
As folhas estão todas negras
Mas o filme não é mais em preto e branco
Está todo em cores

E pode ser visto no mundo inteiro
Na janela do meu quarto
Na cama
Ou no armário do banheiro

Porque o dia ainda é assim?
Porque o poeta inventou a canção?
Porque ela continua a ser musicada sem nenhuma razão?
Porque a gente sofre demais e não pede perdão?

Entre o céu e a terra

Vê aquela palavra escrita lá em cima
É apenas um pedaço do meu amor
A forma que encontrei de fazer a rima
Pra você provar do sabor

Pode não ter nada de tão fascinante
Podem ser apenas letras a dar um sentido
Ou formas alheias num céu verdejante
Querendo encontrar um abrigo

É uma expressão simples, eu sei
Não sou Neruda nem Raquel de Queiroz
Sei que para os mestres diria, tentei
Ao menos fala algo sobre nós

O verso não está tão perto
Quero que busques no horizonte
Mesmo que atravesses o deserto
E bebas água nessa fonte

Sei que não há asas
Para voar como passarinho
Apenas liberte as amarras
Que te esperarei no meu ninho

Posso ser o teu elo
Entre o céu e as estrelas
Onde estão escritas as palavras
Não são azuis, são vermelhas

A cor que dizem ser da paixão
Repetida nos clichês dos cartões
E também na do coração
Escondido nos porões

Masmorras que me prendem pra sempre
Correntes advertidas por todas as partes
Que não me soltam, nem tentam
E nunca me deixarão saber se chegaste

Um pobre homem

Não tenho preferências por cor de pele ou cabelo de mulher. Gosto delas, e ponto. De todas, sem distinção. Mas aquela menininha arrasou meu coração. Tinha o andar leve; pernas finas, mas lindas; o olhar penetrante; seios avantajados; voz de veludo; corpo escultural. Hipnotizava-me a cada fitada. Caía a seus pés.
A beleza nela era algo singular. Toda vez que a via saltavam-me os olhos; sentia um misto de desejo com ternura; de paixão com devoção (não devoção cristã e nem de subserviência). E ela sabia disso. Aproveitava-se, inclusive. Pedia-me tudo; eu fazia mais um pouco. Sem pestanejar. Pode parecer loucura. Devia ser mesmo. De minha parte não havia razão, só emoção; não havia amor próprio, só amor a ela, e em dobro.
É nestas horas que se vê o poder das mulheres, o fascínio que elas podem causar num pobre homem. Sentia-me um pobre homem, de vez em quando: pobre por amá-la tanto; pobre por achar que não suportaria viver sem ela. E realmente, naquele momento, não conseguia. Havia algo de magnético, de astronômico. Quem sabe ela fosse a lua?
Nunca tendei entender o que se passava. Talvez não quisesse. Bastava-me estar ao seu lado; às vezes acordar ao seu lado; às vezes pensar que em algum momento estaria ao seu lado. Nunca fizemos planos; apenas vivemos os momentos: bons e ruins, é claro. Mas ela me deixou. Foi embora sem sequer dar adeus. Nenhuma explicação, nenhuma divagação, nenhum “eu te amei, mas tive que ir”.
Aquela menininha ainda povoa minha mente. Penso o que teria sido de mim se ainda estivesse com ela. Imagino filhos correndo num quintal florescido; uma casa grande com vista para o mar e nós dois, apaixonados, banhando-nos num oceano qualquer; vivendo de amor, como em alguma história com final feliz e sem os desprazeres da vida real.
Pensando bem, agora sem ela, com o passar dos anos me tornaria apenas um pobre homem; e velho, muito velho, porque teria amado mais do que deveria. Seria pior do que o mestre Gabriel García Márquez: ficaria sem as grandes obras para a posteridade e sem a memória das putas que nunca tive, mesmo que elas fossem tristes.

Do tédio à alegria

A forma vertical do sol refletia na parede esquerda do quarto e dava-lhe a impressão do início da manhã. Mais uma. Os pardais, muitos, cantarolavam, mas eram abafados pelo barulho dos carros. O velho relógio de metal no canto do bidê fazia tic-tac, tic-tac...marcava seis horas.
A rotina enfadonha a obrigava ao ofício. Ela procurou debaixo da cama os chinelos de cor rosa, colocou-os, ajeitou o chambre carcomido e levantou-se. Espreguiçou-se até atingir a envergadura de um arco. Realmente estava cansada. Queria permanecer deitada por dias, mesmo que acordada. Incomodava-a, isso sim, o pensamento de estar no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, há 20 anos.
Olhos entreabertos ela enfim deu alguns passos. Não acreditava que mais um dia o mundo havia de tirar-lhe o prazer de estar consigo mesma. Sozinha, mas preenchida de si. Próxima à janela ouviu lá fora um guri que gritava com a voz já rouca pela insistência: - “O Dia, O dia”, edição de domingo....

A subserviência

Sempre que Marcelo pensava em fazer algo, por mais simples que fosse alguém dizia: “Não faz, Marcelo. Deixa pra outra hora, não é assim”. Marcelo não se irritava com os cortes que lhe davam. Embora tivesse conhecimento de seu problema. Era um sujeito pacato, digamos. Para tudo. Colocava manteiga no pão e vinha uma voz: “Por que não coloca requeijão?”. Marcelo fazia outro e colocava.
Ele não tinha vez. Acostumara-se a ser assim. Marcelo trabalhava havia cinco anos como supervisor de estoque numa pequena empresa do ramo de alimentos. A vida resumia-se em saber quantas caixas de leite haviam sido vendidas no dia, quantas latas de creme de leite teriam de ser repostas nas prateleiras. E só.
Mesmo coordenando um setor, Marcelo mais recebia ordens do que mandava. Sua opinião pouco valia. Todos os seus subordinados achavam-se em condições de lhe dizer como fazer as coisas, embora ele que, em primeira instância, deveria determinar as atividades de cada um.
Marcelo falava com um funcionário:
- Quem sabe colocamos estes produtos aqui em cima.
Funcionário respondia:
- Mas senhor Marcelo, penso que aqui em baixo seja melhor.
- Tudo bem. Aí está bom mesmo, replicava Marcelo.
Aparentemente, sequer ocorria a Marcelo a possibilidade de mudar: de ser diferente, dar outro rumo à vida, impor mais suas idéias, ser ouvido e fazer o que lhe desse vontade. Solteiro, ele tinha mais de 30 anos. Não era mais uma criança. Morava sozinho havia quatro anos numa pensão com quarto e banheiro. Preferia assim. Deixara a casa dos pais para “ter mais privacidade”.
Mas uma privacidade difícil de entender. Porque as mulheres o deixavam nervoso; ao vê-las, sentia um misto de desespero, suor e prazer; elas também mandavam nele, claro.
Fora criado com duas irmãs e uma prima, e várias tias também; a maioria separada ou viúva. Daí, talvez, viessem o medo das mulheres e a subserviência à população do mundo. Nunca tentou saber a explicação. O pavor tomava-lhe o corpo cada vez que uma pequena se aproximava. Marcelo as chamava assim: pequena. Sentia-se íntimo das mulheres, embora quase nunca chegasse perto delas.
A Flavinha, sua vizinha de porta, por incrível que pareça não lhe despertava essas sensações de repulsa. Cruzavam-se de vez em quando. Olhavam-se de vez em quando. Marcelo só sabia o nome: Flavinha. “Ahh, Flavinha...”, pensava. Mas queria saber mais. Precisava.
Por algum motivo que não tinha idéia qual ela era diferente. Tinha de ser. Não bastasse tudo, Marcelo era tímido. Flavinha, não; dava pinta de safada. Num dos encontros pelos corredores ela vinha do supermercado com dezenas de sacolas. Marcelo teve vergonha de oferecer ajuda. Ela encarregou-se de pedir:
- Pode me ajudar com essas sacolas?
Marcelo, gaguejando e suando:
- Cl...aaaro
Para agradecer, Flavinha, que nada tinha de tímida, ao contrário dele, o surpreendeu:
- Quer jantar comigo esta noite?
Marcelo ficou mudo por alguns segundos e respondeu com outra pergunta:
- Eu?
Flavinha, de novo:
- Claro, você mesmo!
Molhado de suor como se tivesse tomado um banho de chuva, ele disse:
- Sim, quero sim...
Ela marcou para as nove horas. Em ponto. No horário, Marcelo batia à porta. Ele tentava controlar-se, mas já estava novamente suando e tremendo. Havia tempos uma mulher não fazia parte de seu dia-a-dia. Esquecera a ultima vez.
Flavinha abriu a porta. Vestia uma calça jeans justíssima e uma blusinha azul tomara-que-caia. Recém tomara banho. O perfume e o cheiro do sabonete pairavam no ar. Marcelo entrou. Deram-se dois beijinhos. Flavinha convidou-o para sentar. O jantar estava pronto: macarrão à bolonhesa. Comeram praticamente sem trocar uma palavra. Tomaram vinho. Duas garrafas.
Ao longo do percurso etílico, começaram a conversar formalidades: trabalho nisso...sou de tal lugar...tenho tantos anos...gosto de fazer isso...Mesmo discreto Marcelo observava o corpo escultural de Flavinha. A calça marcava-lhe a silhueta: - Um violão, pensou ele. Estavam lado a lado naquele momento.
Entorpecidos pelo vinho ela deu-lhe um beijo. Acanhado, ele retribuiu. Bastaram alguns segundos para que roupas começassem a voar: sapatos, calças, blusa e camisa, enfim, peças íntimas. Ela começou a pedir-lhe coisas estranhas: me bate..me chama disso...me chama daquilo... Marcelo entrou no jogo. Afinal, ser mandado era, digamos, sua especialidade. Ele a amarrou, a pedido dela. Fizeram amor por horas. Ele descobrira nela uma mescla de ninfomaníaca com sadomasoquísta. Exaustos, deitados e quietos, Marcelo rompeu o silêncio. E gritou: - Estou curado...!

Texto escrito em 2007

A desconfiança de Carlos

Carlos era um cara desconfiado. Achava que todos o perseguiam. Desde criança foi assim. Olhava com receio para os que se aproximavam dele. A família não o entendia. Mandaram-no a psicólogos, psiquiatras, médicos de todas as especialidades, só faltou ser estudado pela Nasa. Nada adiantava para Carlos. Seus pais perderam as esperanças. E disseram:
- Deixa que viva assim, o Carlos. Talvez a vida o modifique.
Sem chance. A vida só o fez piorar. Aumentaram os medos, as dúvidas. Uma vez na escola Carlos quase estrangulou um garoto por pensar que ele estava espionando-o e que mandaria informações suas para os extraterrestres.
A cada ano que passava Carlos ficava pior, e pior e pior...As pessoas começaram a evitá-lo, tal era sua loucura. Já não tinha mais limites. No supermercado, brigava pelo troco de um centavo, sempre alegando e tentando confirmar que queriam passá-lo para trás.
Dizia ele:
- Olha! Viu como ela tava querendo me roubar.
Sua mulher:
- Pára com isso, Carlos. O que você faria com um centavo?
Retrucava:
- Ué, juntando, juntando, se faz alguma coisa...
Até com os filhos reagia desta forma. Ligava para a escola e perguntava se realmente haviam pedido tais materiais, etc...Alguns o chamavam de sovina, mão-de-vaca. Carlos sabia que não se tratava disso.
Tinha sérios problemas, mas eram mais fortes do que ele. Tornara-se um chato. Sua sala no escritório de contabilidade em que trabalhava era fechada a cadeado. Ninguém tinha acesso. Nem o patrão. Caso precisassem de alguma coisa no final de semana, por exemplo, Carlos saía de casa e providenciava. Mas só ele.
Tanto era o grau de descontrole que a vida familiar ia de mal a pior. Perdera o respeito dos filhos. Ele e a mulher só brigavam. Carlos sempre acreditava estar convicto de suas atitudes. Pensava que fazia a coisa certa. Todos tinham culpa: o governo, os bancos, os donos dos monopólios, até os pobres e desempregados, que roubavam dele indiretamente por meio de ajudas que vinham de seus impostos.
O convívio estava insustentável. A mulher não o agüentou mais. Resolveu separar-se de Carlos. Na justiça, ela levou os filhos e a casa em que moravam. Carlos ainda teve de pagar pensão. Sozinho, num quartinho conjugado num hotel qualquer, ele parecia finalmente ter se dado conta do que fizera:
- Eu sempre tive razão...

Texto escrito em 2007. Primeiro a ser postado no blog.