sábado, 21 de agosto de 2010

Eu

Acordei mais velho ontem do que hoje. Agora escrevo para despistar a solidão. Acompanham-me um quarto, uma cama e alguns pertences. Inverno quente confunde os pensamentos. As sensações são menos verdadeiras, como flores de plástico mortas.
Ouço um barulho estranho lá fora; parecem gritos insanos de uma igreja louca qualquer. Não vou à janela; prefiro não ter a certeza de que alguém está sendo enganado. Acabo de desligar a televisão; quero poupar meu cérebro desse lixo não-reciclável.
Estou sem sono. A madrugada é minha anfetamina. Sou da noite, do escuro, do breu. Sempre que posso durmo quando os primeiros raios de sol começam a brotar no horizonte róseo. Nunca gostei de vampiros nem de morcegos.
Meu sangue é menos artificial e circula rápido pelas veias azuis; uma prova boba de que ainda vivo; ainda não sucumbi à terra, ao fogo e ao choro dos outros. A unicidade nunca foi escolha pra ninguém. É só o que se tem: eu, eu mesmo, sem Irene alguma.
Convive-se – e apenas isso – com outras singularidades; elas até tentam interagir; fingem muito bem, inclusive; um plural contraditório, aliás.
Queria ter dupla personalidade, mesmo taxado de louco. Poderia ser fake: para ser menos eu, menos meus pensamentos, menos tudo aquilo que acho que é meu. Conversaria comigo mesmo. Já tentei o espelho, enganou-me. É difícil ser amálgama.
A minha mistura com a sua não dá nós dois; e, se der, não seremos mais nós; teremos criado outro: meio eu, meio tu, meio metade. Estranho é não poder escolher ser quem sou. O resto é engodo. Afinal, o futuro me dirá como errar no passado.
Fico ansioso, porém, para saber como nos portaremos diante de nossos olhos: O que nos separa é o que sempre vai nos separar.
Mas não caímos no açodamento. Acho que quase resistimos à fugacidade. A fidelidade está apenas nas mentes que hesitam, que falseiam. Sou fiel ao que sinto. Tu também. Tenho ciúme, claro: ciúme do seu reflexo, do seu travesseiro, do seu perfume.
O que fazes com teu corpo é prazer seu. O meu é o teu corpo. Mais: importa mesmo é o que sentimos; faz-me pensar no prazer da troca, sem jamais ter de devolvê-la.

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