sexta-feira, 7 de maio de 2010

A subserviência

Sempre que Marcelo pensava em fazer algo, por mais simples que fosse alguém dizia: “Não faz, Marcelo. Deixa pra outra hora, não é assim”. Marcelo não se irritava com os cortes que lhe davam. Embora tivesse conhecimento de seu problema. Era um sujeito pacato, digamos. Para tudo. Colocava manteiga no pão e vinha uma voz: “Por que não coloca requeijão?”. Marcelo fazia outro e colocava.
Ele não tinha vez. Acostumara-se a ser assim. Marcelo trabalhava havia cinco anos como supervisor de estoque numa pequena empresa do ramo de alimentos. A vida resumia-se em saber quantas caixas de leite haviam sido vendidas no dia, quantas latas de creme de leite teriam de ser repostas nas prateleiras. E só.
Mesmo coordenando um setor, Marcelo mais recebia ordens do que mandava. Sua opinião pouco valia. Todos os seus subordinados achavam-se em condições de lhe dizer como fazer as coisas, embora ele que, em primeira instância, deveria determinar as atividades de cada um.
Marcelo falava com um funcionário:
- Quem sabe colocamos estes produtos aqui em cima.
Funcionário respondia:
- Mas senhor Marcelo, penso que aqui em baixo seja melhor.
- Tudo bem. Aí está bom mesmo, replicava Marcelo.
Aparentemente, sequer ocorria a Marcelo a possibilidade de mudar: de ser diferente, dar outro rumo à vida, impor mais suas idéias, ser ouvido e fazer o que lhe desse vontade. Solteiro, ele tinha mais de 30 anos. Não era mais uma criança. Morava sozinho havia quatro anos numa pensão com quarto e banheiro. Preferia assim. Deixara a casa dos pais para “ter mais privacidade”.
Mas uma privacidade difícil de entender. Porque as mulheres o deixavam nervoso; ao vê-las, sentia um misto de desespero, suor e prazer; elas também mandavam nele, claro.
Fora criado com duas irmãs e uma prima, e várias tias também; a maioria separada ou viúva. Daí, talvez, viessem o medo das mulheres e a subserviência à população do mundo. Nunca tentou saber a explicação. O pavor tomava-lhe o corpo cada vez que uma pequena se aproximava. Marcelo as chamava assim: pequena. Sentia-se íntimo das mulheres, embora quase nunca chegasse perto delas.
A Flavinha, sua vizinha de porta, por incrível que pareça não lhe despertava essas sensações de repulsa. Cruzavam-se de vez em quando. Olhavam-se de vez em quando. Marcelo só sabia o nome: Flavinha. “Ahh, Flavinha...”, pensava. Mas queria saber mais. Precisava.
Por algum motivo que não tinha idéia qual ela era diferente. Tinha de ser. Não bastasse tudo, Marcelo era tímido. Flavinha, não; dava pinta de safada. Num dos encontros pelos corredores ela vinha do supermercado com dezenas de sacolas. Marcelo teve vergonha de oferecer ajuda. Ela encarregou-se de pedir:
- Pode me ajudar com essas sacolas?
Marcelo, gaguejando e suando:
- Cl...aaaro
Para agradecer, Flavinha, que nada tinha de tímida, ao contrário dele, o surpreendeu:
- Quer jantar comigo esta noite?
Marcelo ficou mudo por alguns segundos e respondeu com outra pergunta:
- Eu?
Flavinha, de novo:
- Claro, você mesmo!
Molhado de suor como se tivesse tomado um banho de chuva, ele disse:
- Sim, quero sim...
Ela marcou para as nove horas. Em ponto. No horário, Marcelo batia à porta. Ele tentava controlar-se, mas já estava novamente suando e tremendo. Havia tempos uma mulher não fazia parte de seu dia-a-dia. Esquecera a ultima vez.
Flavinha abriu a porta. Vestia uma calça jeans justíssima e uma blusinha azul tomara-que-caia. Recém tomara banho. O perfume e o cheiro do sabonete pairavam no ar. Marcelo entrou. Deram-se dois beijinhos. Flavinha convidou-o para sentar. O jantar estava pronto: macarrão à bolonhesa. Comeram praticamente sem trocar uma palavra. Tomaram vinho. Duas garrafas.
Ao longo do percurso etílico, começaram a conversar formalidades: trabalho nisso...sou de tal lugar...tenho tantos anos...gosto de fazer isso...Mesmo discreto Marcelo observava o corpo escultural de Flavinha. A calça marcava-lhe a silhueta: - Um violão, pensou ele. Estavam lado a lado naquele momento.
Entorpecidos pelo vinho ela deu-lhe um beijo. Acanhado, ele retribuiu. Bastaram alguns segundos para que roupas começassem a voar: sapatos, calças, blusa e camisa, enfim, peças íntimas. Ela começou a pedir-lhe coisas estranhas: me bate..me chama disso...me chama daquilo... Marcelo entrou no jogo. Afinal, ser mandado era, digamos, sua especialidade. Ele a amarrou, a pedido dela. Fizeram amor por horas. Ele descobrira nela uma mescla de ninfomaníaca com sadomasoquísta. Exaustos, deitados e quietos, Marcelo rompeu o silêncio. E gritou: - Estou curado...!

Texto escrito em 2007

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